História: O Mundo de Zara - Sabedoria - Por Sr Ed


Olá!

O quarto capítulo da série antológica literária que mais curto ler finalmente saiu do forno! Agora contando uma história sobre a raça dos Arcanos, mas com pequenas conexões com Fome, Ambição e Sofrimento.


É a jornada de Marin, uma alquimista que tem sua sabedoria elevada ao extremo pra criar assim a peça chave, que mudaria o mundo.

Pronto pra mais um pouco de "Mundo de Zara"? Então...


Boa leitura! E obrigado sr Ed por compartilhar mais este excelente texto.


O Mundo de Zara

 SABEDORIA


Malakka't, Império Unificado - Ano 706 da segunda era


    O reino de Zirael já não existia mais. O que um dia havia sido o primeiro grande reino de Zara, agora era só mais um dos componentes do império unificado de Klaus. A revolta ainda podia ser sentida como um gosto forte e amargo na boca, já que Zirael foi o último a resistir à tirania. Os únicos seres vivos que possuíam capacidade de se opor ao poder de Klaus eram os arcanos, mas essa esperança caiu por terra quando o próprio pai dos arcanos declarou sua aliança com o imperador. Olander Idri'll alep Silifant fora o primeiro e único dos arcanos a alcançar a imortalidade, feito esse que os demais tentavam incessantemente repetir. Com esse tipo de conhecimento, Olander fundou a academia dos arcanos de Malakka't, no ano 125 da segunda era, sendo ele um dos poucos seres vivos da era atual a vivenciar a era anterior.

Marin por outro lado, formou-se na academia dos arcanos aos 79 anos, tornou-se mestre aos 94 e dedicou os últimos 16 ao estudo da alquimia, ministrando aulas na academia e conduzindo suas pesquisas científicas paralelamente. Era totalmente contra a tirania e à rendição, mas assim como os demais, não ousaria desacatar a vontade do arcano maior.

Sua residência era localizada no centro de Malakka't e bem próxima da academia arcana. Há alguns anos, Malakka't tentou adotar a arquitetura da cidade de Lad Callop, onde todas as residências eram dentro de caules de árvores, mas com o andamento da guerra esses esforços foram deixados de lado, fato que aumentou a precificação de residências do tipo. Ainda assim, Marin pôde realizar o sonho de morar em uma. Nada muito exagerado, o caule de sua árvore possuía apenas sete metros e meio de diâmetro externo, então os cômodos internos não eram tão espaçosos, não passando de seis metros de diâmetro. Para compensar essa falta de espaço, os cômodos foram separados em vários andares, até onde a árvore permitiu chegar. No caso de Marin, sua residência possuía quatro andares, o térreo era a sala de estar e o banheiro, o segundo piso era a cozinha, o terceiro era o quarto e o quinto era sua sala de estudos, onde só ela entrava. Todos esses cômodos eram esculpidos com a madeira da própria árvore, as paredes possuíam entalhes representando a natureza e as janelas e portas utilizavam mecanismos de trava feitos com a madeira que era retirada. Em Zirael presta-se grande respeito à Nod, o deus da natureza, e acreditam que todas as grandes árvores possuem espírito, sendo essa harmonia com Nod a razão de Lad Callop existir e a floresta de Elem Parta ser preservada. Se alguém ou algo destruir a árvore, o espírito também é destruído, da mesma forma que a residência estará condenada se o espírito não aceitar o residente. Os vanar e os espíritos das árvores, também chamados de trimlings, vivem em harmonia desde meados da primeira era, quando o reino de Zirael precisou expandir seu território sem que a natureza fosse destruída. O trimling da árvore de Marin se chamava Zug e raramente se comunicava, apenas quando fosse estritamente necessário, tornando assim a vida de Marin bem pacífica. Sua árvore era uma Sagoura, possuía madeira vermelha e suas folhas eram grandes e largas, com formato semelhante à de uma grande gota de água pendurada.

Marin estava em sua sala de estudos no quarto piso, sentada em sua mesa com uma grande janela aberta, dando vista para a moradia de seus vizinhos. O quarto era pequeno, assim como os demais, tinha uma mesa com cadeira, uma poltrona, uma estante onde ela guardava seus livros e que fora esculpida na própria parede, uma estante feita de um outro tipo de madeira onde guardava algumas amostras de estudos anteriores, um tapete azul no chão e alguns certificados emoldurados e pendurados nas paredes, representando suas conquistas acadêmicas. No teto pendia uma lamparina à óleo que estava apagada, na mesa uma outra lamparina e nas paredes algumas flores de candelabulba, já mortas. Essas flores eram capazes de emitir luz própria durante a noite, fechavam-se durante o dia e normalmente não duravam mais de cinco dias depois de serem arrancadas. Por serem vendidas a um preço baixo em Malakka't, era comum estar sempre repondo-as. As flores de candelabulba eram o que tornava a maioria das cidades vanar tão brilhantes durante a noite, dando a elas um aspecto mágico. Considerando o que estava estampado na bandeira do império, Marin resolveu dar um tempo de flores e estava dando preferência às suas lamparinas.

À frente de Marin havia um pequeno espelho, na mesa, refletindo seus cabelos loiros e seus olhos de esclera amarela e pupila castanha, pensativos, encarando a carta já aberta em sua mão. Grudado no papel havia um selo em cera vermelha ostentando o símbolo da universidade dos arcanos, um castelo com três esferas em cima, representando poder, conhecimento e força. A carta dizia:


"À excelentíssima Marin Sont,

Por meio desta carta, tenho a honra de convidá-la para uma vaga no corpo da minha equipe pessoal de pesquisa. Estamos desenvolvendo um projeto de vital importância e seu conhecimento alquímico seria significativamente relevante para o progresso do mesmo, considerando que seu último manuscrito sobre as propriedades condutivas da prata são dignos de nota. Caso seja do seu interesse, apresente-se em minha sala no próximo migniol, às oito horas. Se possível, mantenha em segredo este convite.

Atenciosamente,

Olander Idri'll alep Silifant"


Aquela era uma oferta que nenhum pesquisador recusaria, inclusive seria alvo de inveja entre os profissionais da área, porém, Marin pensava de outra maneira. Desde a rendição ela não confiava mais no pai dos arcanos, o via como um traidor e sentia que havia estudado e aprimorado suas habilidades arcanas sem propósito algum, já que não podia nem mesmo proteger sua nação. Recebera a carta em nurol e já era junol, ou seja, se fosse aceitar era necessário que se apresentasse ao local no dia seguinte. 

Seu subconsciente já havia tomado a decisão, mas ela ainda estava enganando a si mesma e decidiu distrair a mente lendo alguma coisa. Fora da sala de aula, Marin era bem solitária, sua escolha de seguir a vida acadêmica e de pesquisa lhe custou bastante, pois não pôde construir uma família, algo considerado de suma importância na cultura vanar. Normalmente isso não lhe incomodava, acreditava ter sido sábia em sua decisão e provavelmente faria as mesmas escolhas novamente. Porém, quando parava para observar sua casa vazia, sentia certa ansiedade acerca do futuro. E se tivesse tomado a decisão errada? Esse tipo de dilema não era incomum entre os vanar, já que eles eram uma raça de grande longevidade, mas com idade fértil limitada, normalmente perdurando até os 120 anos e Marin sabia que estava chegando perto. Havia decidido que seu legado seria deixado em forma de conhecimento para as futuras gerações, não em descendência. Invadida por esses pensamentos familiares, trocou seu livro de romance por um artigo acadêmico e voltou a estudar, afinal, não havia tempo nenhum a perder.


No dia seguinte, lá estava ela, diante da grande porta de madeira, no último andar do Castelo de marfim. Assim que levantou a mão para bater na porta, esta se abriu diante dela.

- Entre - Ouviu uma voz calma e suave lhe chamando.

Marin entrou, sentindo-se pequena dentro do grande salão com paredes de marfim e móveis de tauri, uma madeira branca como a neve. O pai dos arcanos estava em pé, atrás de uma grande mesa redonda no centro do salão. Seus cabelos eram longos, lisos e loiros, possuía uma estatura alta, tendo por volta de um metro e noventa, seus olhos possuíam uma esclera azul marinho e sua íris era violeta. À sua direita havia um vanar já sentado, com cabelos pretos amarrados em coque e com as laterais da cabeça raspadas. À sua esquerda uma vanar de cabelos encaracolados e ruivos.

- Venha, sente-se - Olander disse, calmamente - Temos muito a conversar.

Marin se aproximou e fez uma leve reverência antes de sentar-se no lado oposto da mesa redonda, de frente para Olander.

- Considerando que se encontra diante de mim - iniciou Olander - Vou entender que recebeu minha carta e que aceita minha proposta, então me permitirei ir direto ao ponto. Estes são Noriel e Luna.

Olander disse enquanto apontava para os dois sentados aos lados da mesa, dispensando a apresentação de Marin.

- Vocês estão aqui, pois, ao meu lado, construirão uma arma!

Marin imediatamente foi tomada pela decepção. Abaixou sua cabeça e a balançou de um lado a outro, tentando expulsar as feições de raiva que incontrolavelmente tomavam seu rosto.

- Sinto muito senhor - Marin disse enquanto se levantava da mesa, arrependendo-se amargamente por estar ali - Não posso contribuir com isso, me recuso a fornecer ao imperador novos meios de oprimir nosso povo.

Os outros dois membros não esboçaram reação, como se já esperassem aquilo e estivessem de acordo.

- A arma não é contra o nosso povo, Marin Longdar Sont - Olander manteve a calma e a firmeza na voz - É contra ele, seremos nós os responsáveis pela ruína de Klaus.

Marin rapidamente parou e virou-se para Olander. Depois, tomou novamente seu lugar na mesa e perguntou:

- Mas… Você se aliou a ele, está realmente falando em traição? - Marin olhou para os outros dois para ver se apenas ela estava em choque com aquele tipo de revelação, mas enquanto Noriel lhe encarava sem nenhuma surpresa, Luna encarava o tampo da mesa, também sem demonstrar nenhum estranhamento.

- Não era o que você queria? - Olander a provocou - Não se preocupe, isso não é uma armadilha.

Ignorando o risco que podia estar correndo, Marin continuou, com medo de perder a oportunidade.

- Com todo respeito senhor - Marin podia discordar do arcano maior, mas sabia reconhecer a grandeza do mesmo e não conseguia esconder que se sentia um pouco oprimida diante da presença de um arcano tão poderoso - Não havia outras formas de lidar com isso? Somos arcanos, devíamos ter lutado até o fim, nós éramos os únicos que ainda tinham alguma chance, agora ninguém mais acredita no cumprimento dos nossos deveres.

- Sim, poderíamos ter continuado lutando, mas quantos mais ainda morreriam no processo? - Olander respondeu, mantendo um olhar penetrante em Marin  - Eu sei que eu sobreviveria, mas teria que carregar o peso de todas essas mortes nos meus próprios ombros e nos de mais ninguém, então acredito que tomei a decisão certa.

Marin fez menção de dar alguma resposta, mas ele continuou:

- Da forma que estamos fazendo, sei que podemos derrubá-lo, agindo bem debaixo do nariz e da arrogância dele. A sabedoria sempre foi a virtude da nossa raça, não foi?

Marin sentiu-se tola por não conseguir mais argumentar quanto à decisão dele. Por todo esse tempo esteve pensando apenas como indivíduo e em como ela seria capaz de dar a vida para proteger o reino, mas se colocando num contexto mais amplo, pensando em quantas vidas estariam em jogo e principalmente se ela fosse a responsável por todas elas, talvez tivesse tomado a mesma decisão que o arcano maior tomou.

- E se ele descobrir? - perguntou Marin - O imperador tem olhos em todos os lugares, tem certeza que ele confia em você?

- Ele precisa confiar - Olander respondeu com a mesma certeza que sempre respondia - Klaus dominou todo o mundo, mas ainda é humano, está envelhecendo, então ele almeja aquilo que eu já tenho.

- Mas selenitas não podem manipular energia arcana, ele deve saber disso, qual interesse ele tem no arcano maior?

- Ele quer se tornar imortal - Luna, a vanar ruiva, se pronunciou pela primeira vez.

- Mas isso volta ao meu questionamento - Marin continuou - É possível conseguir isso sem as artes arcanas?

- Os métodos dele são um pouco… singulares - Olander retomou - precisamos discutir isso.



A ideia parecia absurda. Se antes Marin se sentia revoltada por seu reino estar na mão de um tirano, agora sentia medo, pois estava na mão de um louco. Não via como aquele plano nefasto poderia dar certo, mas se Klaus estava disposto a enfrentar deuses, talvez lutar contra ele realmente não fosse a decisão mais sábia. No momento, precisava se concentrar em seu objetivo: criar a arma.

Acreditava-se, em grande maioria, que toda energia mágica do mundo tinha origem divina, mesmo que nem todos os usuários prestassem culto a esses deuses. Assim, alguns referiam-se apenas como "energia natural". A maioria dos arcanos estudavam para manipular os elementos, que segundo a teoria eram provenientes dos cinco deuses maiores: Zara, Dorin, Frauduin, Oásis e Arkhé.

O que diferenciava os arcanos dos selenitas era a fonte. Os arcanos manipulam a magia divina em detrimento de sua própria energia espiritual, provenientes da Vida, sendo algo esgotável e limitado, necessitando horas de descanso a depender da quantidade de energia manipulada. Essa energia espiritual usada para manipular a magia divina era chamada de fluxo mágico. Durante sua iniciação, Marin aprendeu que a magia divina era como o vento, enquanto sua energia espiritual era como um leque. Dava para manipular o vento daquela maneira, mas apenas de forma limitada. Alguns leques eram maiores ou menores, mas mesmo os grandes possuíam limitações. Por outro lado, selenitas não precisam desse leque, eles próprios são parte da fonte, exalando magia divina do seu âmago, o que possibilita o uso de seus poderes sem o menor desgaste físico. Isso, no entanto, os tornam limitados a um único poder, atrelado à sua fonte pessoal de magia, impossibilitando também que manipulem outros tipos através das artes arcanas. Klaus era uma rara exceção, tendo a capacidade de utilizar múltiplos poderes, também de maneira ilimitada, com a condição de ter que roubar de outro selenita.

A magia é como um fluxo de energia natural que emana de todas as coisas, podendo ser moldada ao interagir com um outro fluxo. O que Marin precisava era criar um material capaz de desestabilizar ou anular esse fluxo. O que havia chamado a atenção do arcano maior foi um estudo feito por Marin sobre as propriedades condutivas da prata, sendo esse um metal que poderia ser usado como canalizador.

Para conduzir esse projeto, uma equipe pequena foi formada, buscando manter o máximo de sigilo possível. Ao seu lado estava Noriel, experiente com manipulação de espécimes vivos e Luna, especialista em canalização, trabalhando com cajados e varinhas de diferentes materiais. Marin era especialista em transmutação, uma das disciplinas específicas inseridas dentro da alquimia. Juntos, eles deveriam ser capazes de criar essa arma. Dentre todos, a função de Noriel era a mais sombria, já que supostamente eles precisariam de um selenita para testar a arma, sendo esse um assunto que Marin e Luna evitavam de tocar até que realmente fosse necessário, tornando a função de Noriel até aquele momento de intermediador entre elas e Olander.

    "Dia 5

Sem muito progresso…

A condutividade da prata surpreendeu Luna. Segundo ela, a prata pode ser utilizada como núcleo para varinhas ou cajados, mas esse não é o tipo de arma que estamos tentando criar.

Observação 1: Não gosto de canalizadores, prefiro minhas mãos e dedos.

Observação 2: A descoberta da prata como condutor foi acidental, descobri isso pela facilidade em transmutar o material, minha intenção era apenas criar um modelo de transmutação bem estabelecido.

De qualquer maneira, entender essa capacidade condutiva pode ser a chave para revertê-la, só precisamos entender."


O laboratório em que foi colocada para trabalhar se localizava no próprio castelo de Marfim, no segundo andar. Os materiais disponibilizados para o trabalho eram o melhor que a academia poderia oferecer, desde equipamentos tecnológicos a mágicos, incluindo um microscópio de luz ligado a um cristal de manita energizado, invenção essa de menos de três anos atrás. Luna era extremamente entusiasmada, excitando-se com qualquer mínimo progresso ou nova descoberta que faziam, coisas que para Marin eram quase insignificantes se considerasse o objetivo final.

- Isso é incrível - Luna dizia, enquanto enrolava uma mecha do seu cabelo ruivo na ponta do dedo indicador, como sempre fazia - essa capacidade deve ter algo a ver com a organização eletrônica do material, como o professor Martino descreveu, mas sabemos tão pouco sobre isso.

- Arkhé? Mas você utiliza canalizadores de madeira, que são péssimos condutores de eletricidade. Além disso, tenho mais proficiência com água - Marin respondeu, pensando em como poderia testar aquilo.

- Mas segundo ele, arkhé está em tudo, então isso explica conseguirmos conduzir todos os elementos.

- Quem dizia era ele ou o templo que ele frequentava? - Marin questionou, em tom ácido.

Por ter dedicado sua vida à ciência, Marin não era uma pessoa muito religiosa. A existência de deuses menores já era comprovada, tendo havido interações com tais entidades por todo o mundo, mas alguns estudiosos acreditavam que esses seres eram apenas manifestações da natureza, não tendo havido qualquer prova concreta da existência dos deuses maiores ou dos primordiais, como defendia a teoria criacionista.

- Ah... acho que dá pra conciliar os dois, sabe? - Luna respondeu, pois frequentemente ia ao templo do Guardião e usava um colar com um pingente representando Vitra, a deusa da sabedoria.

- Não aqui, na ciência isso é um viés - Marin falou com convicção - se obtivermos um resultado precisamos interpretá-lo de forma racional, baseado em evidências.

- Não se preocupe com isso, sei fazer interpretações racionais - Luna disse - Mas se até hoje nenhuma refutou minha fé, então ponto para mim.

Percebendo que não chegaria a lugar algum, Marin preferiu ignorar e seguir o que estava fazendo.

Utilizando suas habilidades mágicas, tentava transmutar uma haste de prata, fazendo pequenas modificações na conformação dos cristais metálicos e em seguida testando se houve modificação na capacidade condutiva.

O teste estava sendo feito com água, onde Marin aplicava uma quantidade de magia na ponta da haste metálica enquanto a outra ponta se encontrava dentro de um tubo com água. O objetivo era resfriar a água utilizando sempre a mesma quantidade de magia. Depois de aplicada, mediam a temperatura com um termômetro de mercúrio. Utilizando como comparação uma haste de ferro, observou-se que precisavam do quádruplo de energia aplicada para congelar um tubo com água em temperatura ambiente, enquanto uma haste de ouro precisava do dobro de energia utilizada na haste de prata. Com base na observação de Luna e no estudo do professor Martino, pensaram também em um novo modelo de teste com arkhé.

O teste era feito ligando a haste à ponta de um bulbo contendo gás fluorescente, que quando excitado pela eletricidade emitia luz própria. Luna possuía maior proficiência com arkhé, então ficava encarregada de aplicar sempre a mesma carga elétrica na ponta da haste e mediam o potencial condutivo de acordo com a luminescência emitida pela lâmpada.

Infelizmente, o processo de transmutação era demorado e desgastante, além de necessitar de uma precisão microscópica que só era possível observar com os sentidos mágicos, então limitavam-se a no máximo dois ensaios por dia.

"Dia 37

Ainda com pouco progresso…

Estruturas cúbicas de corpo centrado parecem conduzir mais eletricidade, mas isso não parece interferir na capacidade de conduzir magias referentes a outros elementos, como água ou ar. Além disso, a condutividade elétrica também se aplica ao ferro e ao ouro, mas estes não são bons condutores arcanos, então concluímos que a estrutura não tem relação.

Estruturas de madeira, por outro lado, também conduzem energia arcana, mas são péssimos condutores elétricos. Portanto, reafirmo que arkhé não se relaciona com a condutividade mágica.

Observação 1: Aquecer o material para produzir alterações conformacionais me ajudou a poupar energia.

Observação 2: Sinto que estou olhando para o lado errado."

- Então… como estamos? - Noriel perguntou, buscando qualquer informação que pudesse reportar para Olander.

- Péssimos! - Marin respondeu prontamente.

- Melhorando - Luna respondeu ao mesmo tempo.

Noriel intercalou o olhar entre uma e outra, aguardando que se resolvessem antes de responder à pergunta dele.

- Não está ruim! - Luna insistiu - Com o conhecimento que já adquirimos daria para publicar um livro.

- Mas não queremos um livro - Marin disse com ar cansado - Queremos uma arma, não é?

- Mas para fazer uma arma precisamos de conhecimento! E temos gerado muito.

- Mas não tem ajudado.

O fato de Klaus estar ali governando desmerecidamente o seu reino enquanto ela estava ali colecionando fracassos era frustrante

- Tem alguma notícia nova, Noriel? - Marin massageava a testa com o dedo indicador e polegar, tentando afastar a enxaqueca causada pelo uso constante dos sentidos mágicos.

- Os klausfaendr já foram selecionados, Olander é um deles, apesar de não ter se tornado um selenita, evidentemente - Noriel se referia aos chamados "filhos de Klaus" ou “filhos do guardião”, que recebiam poderes do imperador e autoridade sobre determinada região conquistada - Os demais selenitas em Malakka't já foram capturados e tiveram seus poderes removidos.

- O rei Magnus não se aliou a ele? - Luna perguntou.

- Segundo os boatos, parece que ele tentou - Noriel respondeu - mas Klaus não confiou nele, acho que estava certo de qualquer forma, pelo menos algo bom veio disso.

Haviam boatos sobre a ilegitimidade do rei Magnus, o último da linhagem real antes da conquista. Magnus era filho único do rei Luminus II com a rainha Noelle, porém, ela já tinha uma idade avançada quando ele nasceu, o que levantou suspeitas sobre uma possível fraude, mas que ninguém ousava questionar abertamente. Agora, com a queda da coroa, as coisas começavam a mudar.

- Klaus não é melhor do que Magnus era - Marin respondeu, sempre pronta para demonstrar sua insatisfação com o império.

- Mas todos sabiam o que Magnus fazia por baixo dos panos - Luna pontuou.

- Coisa que Klaus não se esforça nem para esconder - Marin alfinetou mais uma vez.

- Tudo bem, tudo bem - Noriel encerrou o assunto com as duas mãos levantadas - acho melhor voltarem ao trabalho, vou seguir o meu, estamos no rastro de um provável selenita, talvez tenhamos uma cobaia em breve.

A ideia de ter uma cobaia tornava as coisas ainda mais urgentes, mesmo que tivessem um selenita em mãos agora, não tinham nada para testar. Marin sentia que precisava de resultados concretos com urgência.


Voltando ao trabalho, alguns dias depois, Luna iniciou um diálogo:

- Já estudei um pouco sobre transmutação, mas nunca me atrevi a trabalhar com isso. Você consegue alterar a partícula fundamental, correto?

Segundo os estudiosos, a partícula fundamental seria a menor parte de algo que compõe todas as coisas, sendo algo invisível aos olhos, mas que supostamente podia ser sentido através de magia.

- Sim, ou pelo menos é o que nós pensamos que estamos alterando - Marin respondeu - Sabemos pouco sobre isso ainda, quase tudo é teoria.

- Quando você transmuta algo, quais mudanças você observa na partícula fundamental?

- Normalmente altera a massa, mas isso depende de um conhecimento prévio. Se eu transmutar a prata em ouro, por exemplo, a massa da partícula fundamental é maior, mas eu preciso conhecer exatamente a massa e estrutura do ouro antes de tentar.

- Espera - Luna disse, surpresa - está dizendo que sabe transformar prata em ouro?

- Tudo pode ser transmutado, contanto que seja inorgânico - Marin respondeu, como se estivesse em sala de aula ministrando para uma nova aluna - só não é muito fácil. Além disso, é muito mais difícil transformar um metal em um não metal, ou vice versa. Quanto mais próximo, alquimicamente, mais fácil. De onde acha que veio todo esse marfim para revestir o castelo?

- Isso é marfim de verdade? - Luna perguntou, com as duas mãos na cabeça - achei que fosse só um nome, como o castelo rubro.

- É de verdade, mas só consigo imaginar o trabalho que deu.

- Tudo bem, voltando ao assunto inicial. Seria possível criar algo que não existe ainda? Um novo material? - Luna agora enrolava na ponta do dedo indicador um de seus cachos ruivos, desenrolando-o totalmente e depois soltando para que o cacho se refizesse.

Marin ficou pensativa por alguns segundos, refletindo sobre a possibilidade.

- Não sei, acho que não… talvez seja possível criar algo que ainda não descobrimos, mas novo? Acho difícil.

- Difícil não é impossível - Luna disse, otimista.

- Mesmo que não seja, e daí? Não entendi onde quer chegar, se eu só criar outro material não vai mudar nada se ele continuar conduzindo magia.

- Aí entra minha próxima teoria - Luna disse, animada, como se estivesse querendo chegar naquele ponto desde o início da conversa - De onde veio a magia?

- Ora, ela sempre existiu, não?

- Sim, claro, mas quem nos permite usar?

- Ah, lá vem você de novo…

- Você sabe que foram os deuses - Luna segurou com a mão esquerda seu pingente da deusa Vitra - Toda magia provém do divino.

- E aí está, você de novo. Mas como isso nos ajuda? É só isso que preciso entender - A animosidade de Marin era totalmente oposta à de Luna.

- A existência dos deuses garante o equilíbrio, tudo no universo é equilibrado, Caos e Ordem, Vida e Morte, Frauduin e Oásis, magia e antimagia…

- A teoria da antimagia é que ela é apenas a ausência de magia, não um conceito oposto, é como o frio ser a ausência de calor - Marin pontuou.

- Sim, mas se a magia se comportar de forma parecida, removê-la seria o suficiente para que a antimagia preenchesse, entende onde quero chegar?

- Mais ou menos - Marin refletiu - Está falando de um feitiço de absorção? Podemos absorver toda a magia de um objeto, mas assim que cessamos o feitiço a magia volta naturalmente. Considerando que há magia em todas as coisas, seria como retirar a água de dentro de um copo que está no fundo de um rio.

- Mas se esse copo tiver uma tampa, podemos mantê-lo fechado para que a água não retorne.

- Imagino que, seguindo sua linha de raciocínio, a tampa seria a transmutação - Marin indagou.

- Isso! - Luna concordou com entusiasmo, batendo a palma das mãos uma na outra - você entendeu o meu ponto. Mas não existe nenhum material conhecido com propriedades antimagia. Para isso, você realmente precisaria criar algo do zero…

Parando para pensar na possibilidade, Marin massageou a testa com o dedo indicador e polegar, fechando os olhos e refletindo sobre a real dificuldade da missão. Quando se deu conta, estava presa em seus próprios pensamentos negativos. Pensou que talvez ela não fosse conseguir, talvez fosse até impossível. Olander havia escolhido a pessoa errada para a tarefa, talvez ela devesse ter ignorado a carta, talvez ela estivesse seguindo um caminho completamente oposto e que não daria em nada, como explicaria a falta de resultados? Talvez ela…

- Vai dar certo! - Luna interrompeu os pensamentos de Marin - Você vai conseguir, tenho certeza. Você é a melhor alquimista que já conheci, além disso, estaremos com você auxiliando.

- Estaremos? - Marin perguntou, confusa, mas logo percebeu que Luna segurava o pingente da deusa na mão - Ah… bem, nesse caso, acho que toda ajuda será bem vinda.


"Dia 44

Desenvolvemos um método para execução do projeto. É possível drenar a magia de um objeto utilizando o feitiço de absorção, mas logo o objeto em questão é infundido por magia novamente. Dessa forma, preciso realizar a transmutação durante o processo de drenagem, assim, criarei um material que seja estável na ausência de magia. Claro, como a drenagem estará ocorrendo simultaneamente, preciso gastar o dobro da energia e ter o dobro da atenção, já que a percepção mágica também é afetada.


Dia 51

Estudamos os materiais adequados para o experimento. Luna conhece os melhores e piores condutores mágicos, assim, selecionamos aqueles com o perfil mais próximo do que almejamos alcançar. Para ela, ainda é estranho a sensação de estar criando algo 'anti divino', mas eu só preciso que funcione. Além disso, a ideia foi dela, ou pelo menos eu acho que foi.


Dia 55

Tivemos um acidente enquanto eu tentava transmutar madeira de elmo. Fazer isso durante a drenagem é realmente difícil. Devido a uma instabilidade, o material explodiu e algumas farpas nos atingiram no rosto e nos braços. Por sorte, nada muito sério aconteceu, mas precisaremos de uns dias para nos recuperarmos.

Noriel encontrou uma cobaia, mas ainda não tivemos contato, ele o manterá preso até que tenhamos algum progresso.


Dia 62

O próprio pai dos arcanos se ofereceu para ajudar em nossos experimentos, para evitar futuros acidentes. Apesar de não ter muito conhecimento científico, Olander é versado em todas as áreas da magia que já se propôs a praticar. Para nossa segurança, aplicou um escudo arcano que protege tanto a mim quanto a Luna durante a transmutação, além de me transferir energia espiritual suficiente para triplicar o meu tempo de transmutação. Acredito que agora faremos algum progresso.


Dia 93

Nada ainda…

Ter o arcano maior conosco é um alívio, pois ele incentiva os nossos métodos e parabeniza qualquer pequeno progresso, além de oferecer suporte e conhecimento mágico. Considerando que ele encabeçou esse projeto, é reconfortante saber que pelo menos estou seguindo em um caminho que o agrada.

Percebi que transmutar objetos com pouca condução mágica torna quase imperceptível as pequenas mudanças, assim, Olander me incentivou a retomar meus experimentos com a prata. Dessa maneira, posso identificar com mais facilidade os fatores que tornam o material mais ou menos condutivo. Não estou mais mudando apenas a conformação, como eu fiz no início, agora estou modificando a própria composição do material.


Dia 123

Fizemos muito progresso…

Olander precisou se ausentar, o que reduziu a nossa produtividade, mas muito já foi alcançado até aqui, consegui finalmente identificar uma estrutura que não conduz nenhum fluxo mágico. Infelizmente, é uma estrutura instável e preciso transmutar o material por completo para que ele mantenha suas propriedades, ou pelo menos é o que eu acredito, já que qualquer interrupção leva à perda de todo o progresso. Como estamos lidando com material metálico, os riscos de um acidente grave são muito maiores, então devo prosseguir com cautela.


Dia 164

Olander retornou. Serei capaz de progredir com muito mais velocidade, além da segurança. Luna tem me ajudado a identificar padrões, assim, a cada tentativa eu consigo avançar um pouco mais que a tentativa anterior.


Dia 172

Finalmente, consegui estabilizar o material, infelizmente os resultados foram imprevisíveis…"


Marin estava ofegante e a cabeça doía como nunca, mas finalmente havia conseguido. Ela, Luna e Olander estavam de pé, diante da bancada de trabalho de Marin, com uma haste metálica prateada diante deles. Visualmente, parecia muito com o material original, feito de prata, mas que não podia ser identificado através dos sentidos mágicos. Justamente o fato de ela ser a única estrutura que Marin não conseguia visualizar foi o que a guiou até aquele ponto, pois, quando desaparecia, sabia que havia chegado na estrutura certa. Com toda a certeza aquilo lhe renderia horas de enxaqueca, mas havia conseguido. Todos na sala estavam com um olhar perplexo, pois não era como se o material fosse completamente invisível aos sentidos mágicos, era mais como se estivessem olhando para o próprio vazio. Sem a ajuda de Olander, nunca teria sido possível. Para que ela pudesse continuar transmutando o material sem perder a concentração era necessário uma quantidade massiva de energia espiritual, coisa que ela não possuía e não fazia ideia de como Olander a tinha para lhe transferir.

Ao olhar para ele, Marin viu um sorriso largo, exibindo a dentição reta, típica da raça vanar. Seus olhos eram de maravilhamento, como se observasse a paisagem mais bela de sua vida, possivelmente enquanto usava seus sentidos mágicos para observar o material.

- Isso me causa arrepios - Luna disse, afastando-se da mesa e segurando seu pingente.

- Posso ter a honra? - Olander perguntou.

- Do quê? Senhor - Marin perguntou.

- De testá-lo, é claro - Os olhos do arcano maior ainda estavam vidrados no material - Precisamos saber se ele conduz ou não o fluxo mágico, não era esse o objetivo?

- Ah, sim… Claro - Marin estava contente com sua conquista, mas por estar acostumada à pesquisa científica, não se deixava levar pela emoção. Sabia que precisava realizar muitos testes antes de considerar aquilo um sucesso. Conhecendo o seu histórico, provavelmente encontraria algum problema e ainda teria muito trabalho pela frente. Mas no momento, não queria estragar o entusiasmo do arcano maior.

Colocando a ponta do dedo indicador sobre a haste metálica, Olander impulsionou seu fluxo mágico através do material, provavelmente conjurando algum feitiço simples.

Mesmo sem estar usando seus sentidos mágicos no momento, devido ao cansaço, tanto Marin quanto Luna puderam sentir quando a quantidade irreal de magia desapareceu da sala. A presença de Olander no local era como se houvesse uma estática no ar, tamanho poder que o arcano carregava. Marin sempre achou que fosse algo psicológico, devido à posição intimidante do arcano maior, mas agora, enquanto o corpo de Olander desabava no chão, já não podia sentir mais nada.

O choque foi imenso, de forma que nenhuma das duas presentes puderam aparar o corpo. Assim que se deram conta do que estava ocorrendo, as duas se abaixaram ao mesmo tempo para socorrê-lo.

Luna verificou os sinais vitais e acenou para Marin que Olander estava vivo, fazendo com que o ar voltasse aos pulmões dela. Agindo rapidamente, Marin colocou suas duas mãos sobre Olander e transferiu parte de sua energia espiritual para ele, assim como ele havia feito para ela anteriormente. Luna, percebendo o que Marin fazia, também colocou as duas mãos sobre ele e repetiu o feito. A energia de Marin estava quase acabando quando pararam, tranquilizando-se ao perceber que a energia de Olander voltava a crescer, de forma natural.

- O que foi que a gente criou? - Luna perguntou, assustada.

- Uma arma, não era isso que queríamos?

- Não sei, sinto que isso é algo ruim. Você não sente isso?

- Não tenho tempo para mais bobagem religiosa, Luna. Vamos tirar ele daqui, logo ele deve acordar, espero…


Olander recuperou a consciência, mas levou bastante tempo para se recuperar completamente. Nesse meio tempo, exigiu que os testes prosseguissem, ordenando que dessem o próximo passo. Assim, Noriel voltou a estar presente, já que era responsável por supervisionar os experimentos com o prisioneiro. 

- Não gosto disso - Luna protestou - Não devíamos estar testando isso em pessoas.

- E você acha que a gente trabalhou esse tempo todo para quê? - Marin rebateu - Além disso, não são pessoas, são monstros.

- Não o conhecemos, Marin, não podemos afirmar isso.

- Então o conheceremos agora.

Dizendo isso, Marin abriu a porta que dava para o laboratório, onde agora Noriel mantinha o prisioneiro transferido da masmorra.

Preso em uma maca, acorrentado, havia um jont, que segundo Noriel se tratava de um klausfaendr recém nomeado. Como era comum da raça jont, o prisioneiro possuía baixa estatura e muitos pêlos no rosto, com braços e pernas robustos. Seus cabelos eram castanhos, assim como a barba e em seu rosto havia uma venda cobrindo seus olhos.

- Não o olhem nos olhos, o espertinho aqui consegue fazer você comer os próprios dedos se quiser - Noriel disse, assim que as duas entraram.

- Mentiroso! O que vocês querem comigo? Me tirem daqui - O jont rapidamente falou, debatendo-se na maca.

Mesmo sabendo que se tratava de um inimigo, Marin não conseguiu deixar de sentir um aperto no peito. Tentava sempre manter uma postura impassível, mas aquele é o tipo de coisa que nunca havia feito, inclusive, consideraria antiético em um passado bem próximo. Agora, precisava ser forte, afinal estava lutando pela liberdade do seu povo.

Luna, no entanto, não parecia tão confiante e nem se esforçava para parecer.

- Não sei se consigo participar disso - Luna disse, já virando as costas.

- Tudo bem Luna, me espera no escritório, relatarei tudo para você depois - Marin mal havia terminado de falar quando Luna fechou a porta atrás de si, abandonando a sala.

- Tudo bem - Noriel disse - Apenas faça seu trabalho. Permanecerei aqui para garantir que fique tudo bem.

Corrigindo a postura, Marin retirou a haste do novo metal de dentro de uma caixa de madeira utilizando uma pinça e se aproximou do prisioneiro, ignorando os seus protestos mentais de que estava fazendo algo errado. Ainda não sabia se o seu contato com o metal a faria mal ou apenas se tentasse canalizar através dele, então evitava tocá-lo.

- Não sei o que está pretendendo, mas não faça. Eu preciso voltar pra minha família, você deve ter uma, não tem? Eu preciso voltar - O jont protestou.

- Quer que eu cale a boca dele? - Noriel perguntou, de forma áspera.

Marin apenas ignorou o que ambos diziam, estendendo todo o seu sentido mágico ao corpo do jont, buscando observar quais alterações seriam causadas pelo contato com o material. A primeira observação é que a energia dele se comportava de maneira diferente, sendo mais intensa e ordenada que a de qualquer outra pessoa, que sempre agia como um fluxo rápido e constante. Esse tipo de comportamento era comum em selenitas, mas a causa ainda era desconhecida. Assim, ao tocar a haste no braço do indivíduo, a reação foi inesperada. Imediatamente toda a energia ordenada tornou-se caótica, reagindo violentamente contra a presença do material, gerando uma queimadura na pele do jont, que gritou e chorou, implorando para que parasse.

Com o susto, Marin soltou a haste no chão, cessando o efeito cáustico, mas mantendo a alteração na energia do jont, como se agora ela fluísse em uma frequência diferente.

- Isso é uma queimadura? - Noriel perguntou, surpreso - Então você realmente conseguiu criar uma arma!

- Não era essa a reação que eu esperava. Quando Olander tentou canalizar através da haste, o metal absorveu toda a energia mágica dele, mas agora foi diferente, a energia dele reagiu violentamente ao contato com o material. Apesar de ter causado essa queimadura, ainda posso sentir o poder emanando desse selenita, só está… diferente.

O jont começou a falar palavras incompreensíveis, em goli. O idioma comum entre os vanar era o ma’la, Marin também sabia falar em vitra e estudou o suficiente para conseguir ler em goli, mas ainda não havia dominado a pronúncia.

- O que ele está dizendo, Noriel?

- Não faço ideia, deve estar nos amaldiçoando.

- O que foi isso que você encostou em mim? - O jont perguntou, ofegante - Eu me sinto doente. Por que estão fazendo isso comigo?

- Eu que pergunto por que estão fazendo isso conosco, seu bastardo - Marin rebateu - Não se faça de coitado agora que saiu da asa do seu imperador.

- Imperador? - O jont disse, parecendo confuso - Eu não sei do que está falando! Eu não tenho partes com o imperador!

Marin olhou para Noriel.

- Ele está mentindo - Noriel respondeu de imediato, sem se incomodar com os protestos - Não deixa essa escória te enganar, ele sabe muito bem quem deu esse poder a ele.

- Isso não é verdade! - o jont gritou - eu estava me escondendo do imperador, ele queria roubar meus poderes, ele…

Rapidamente o jont foi silenciado por um lenço de pano que Noriel enfiou na boca dele.

- Melhor assim… Não se deixe enganar Marin, são criaturas peçonhentas e envenenarão sua mente se deixar. Esse aí foi capturado dois dias depois de se tornar um klausfaendr, seguimos ele por dias antes de isso acontecer. Ele recebeu os poderes diretamente do imperador, como todos os outros.

- Acho que eu já consegui o que queria por hoje, pode levar ele daqui - Marin disse, preferindo tirar um tempo para pensar.

Era isso mesmo que queria fazer? Por mais que sempre respondesse a si mesma mentalmente, a pergunta continuava voltando.


No dia seguinte, não havia como postergar, precisavam continuar com o estudo. Marin insistiu para que Luna fosse com ela, admitindo que também não se sentia confortável com a situação, mas que precisavam entender a natureza daquele novo material. Juntas, entraram na sala, onde novamente encontrava-se o Jont deitado, contido e amordaçado, enquanto Noriel permanecia no canto da sala, em silêncio.

Sabendo que alguém se aproximava, o jont começou a se debater e grunhir.

- Luna, quero que utilize sua percepção mágica, gostaria que observasse o que ocorre com o fluxo mágico dele durante o contato com o material - Marin alertou.

Insegura, mas acenando positivamente, Luna concentrou-se e ampliou sua percepção mágica, observando o fluxo energético do Jont. Luna já havia estado na presença de um selenita antes, então não se impressionou com a intensidade. Além disso, acreditava na teoria dos selenitas terem sido criados pelo deus da feitiçaria, onde metade da sua energia vital era divina, o que explicava a intensidade e constância da energia observada.

- Não desvie a atenção, vou fazer contato.

Imediatamente, Marin tocou a haste metálica no braço do jont, próximo ao local do dia anterior, que agora havia uma marca de queimadura. Dessa vez, manteve uma pegada mais firme na pinça, para que o contato se mantivesse, fazendo com que o prisioneiro grunhisse alto. Conforme o fluxo mágico do jont se desestabilizava, a superfície da pele em contato apresentava uma reação agressiva, gerando novamente uma queimadura superficial como se estivesse em contato com uma substância cáustica. Dessa vez, buscando entender algum padrão entre o movimento desordenado do fluxo mágico do jont, Marin manteve o contato por tempo demais, fazendo com que o jont começasse a convulsionar e vomitar, engasgando-se por conta da mordaça.

Buscando impedir alguma catástrofe, Luna rapidamente removeu a mordaça do prisioneiro, sendo impedida de virá-lo lateralmente por conta das amarras em seus pulsos.

- Não o solte! - Noriel alertou.

- Se eu não soltar, ele pode morrer! - Luna respondeu, já direcionando suas mãos para soltar as amarras.

Antes que pudesse completar o ato, Noriel se aproximou e lhe agarrou o pulso com força, enquanto Marin apenas retirava o metal do alcance das pessoas e preparava-se para reagir a qualquer situação de perigo.

Sem pensar, Luna conduziu seu fluxo mágico para a ponta dos dedos, criando uma grande diferença de potencial entre um dedo e outro, de forma que um arco elétrico se formasse entre eles. Logo em seguida, aplicou um golpe no peito de Noriel, que foi pego de surpresa e caiu paralisado devido à potência da descarga.

- Luna! - Marin gritou - O que você está fazendo?

- Salvando uma vida - Ela respondeu.

Luna rapidamente soltou uma das amarras e virou o corpo do jont de lado para que ele não morresse engasgado, enquanto Marin se abaixava para saber se Noriel estava bem.

O que houve a seguir ocorreu em questão de segundos.

Como quem abandona uma dissimulação, o jont rapidamente aproveitou a oportunidade para remover sua venda, agarrar firme no pescoço de Luna e dizer:

- Mate esses dois idiotas, sua vadia!

Lembrando-se do alerta de Noriel sobre os poderes do selenita estarem nos olhos, Marin levantou-se e espalmou as duas mãos no abdômen do jont parcialmente amarrado, usando o seu fluxo mágico para reduzir a agitação de todas as moléculas em contato, fazendo com que o jont berrasse de dor. Considerando a afinidade de Marin com a água, além de toda a sua experiência como arcana, poucos segundos se passaram até que os intestinos do prisioneiro estivessem completamente congelados e o mesmo estivesse morto na maca.

- Eu… Falei! - Marin gritou, pausando para respirar fundo - Eu falei que não dava pra confiar nessa raça.

Luna permanecia parada, na mesma posição de quando o jont a agarrou pelo pescoço.

- Luna? - Marin perguntou agora em um tom mais brando, preocupando-se com os efeitos dos poderes do selenita sobre ela.

- Acho que descobrimos - Luna disse, com os olhos vidrados no corpo - Conseguimos!

- O que nós conseguimos? Perder nossa cobaia? Conseguimos mesmo. Além disso, você acaba de apagar o Noriel, quero saber como vamos conseguir explicar isso! É só isso que quero saber como vamos conseguir.

- Você não entendeu Marin - Luna continuou - Ele tentou usar os poderes em mim.

- É óbvio que sim - Marin respondeu, ainda furiosa - Você o soltou! Ele só queria nos matar para voltar ao papai imperador dele!

- Não Marin, ele tentou usar, mas não usou.

- Espera, o que está tentando dizer? - Um sentimento diferente subiu do estômago para o peito de Marin.

- Estou tentando dizer que já observei a energia de um selenita em funcionamento, alguns deles na verdade, a um tempo atrás estava conduzindo uma pesquisa sobre condutores mágicos e tive a oportunidade de…

- Direto ao ponto, Luna! - Marin interrompeu.

- Certo, certo! O que quero dizer é que a instabilidade causada pelo contato com o metal o impossibilitou de usar os poderes. Eu ainda usava minha percepção mágica quando ele me agarrou, eu vi ele tentando usar, mas a energia não respondeu. Acredito que em pouco tempo ela voltaria à estabilidade e ele poderia usar, mas naquele momento ainda não tinha voltado.

- Está dizendo que criamos um metal que pode remover os poderes de um selenita?

- Pelo menos temporariamente, sim.

- Mas isso pode mudar tudo! Podemos vencer o imperador com isso - Marin demonstrou um entusiasmo que Luna nunca tinha visto em seu rosto, principalmente considerando que estavam ao lado de um cadáver e de um corpo desacordado.

- Vocês podem, acho que para mim acabou, Noriel vai me matar - Luna falou, refletindo sobre as consequências do que havia acabado de fazer.

- Não, saia daqui, vou acordá-lo e explicar a situação. Quando ele ouvir sobre os resultados, vai entender.


Noriel não entendeu assim tão bem, mas aceitou, passando a ignorar a presença de Luna, sem lhe dirigir uma única palavra ou sequer um olhar. Luna, por outro lado, se encolhia toda vez que o via, temendo que ele a atacasse de surpresa, como ela fez com ele.

Passando-se alguns dias, Noriel entrou em contato com Marin.

- Olander se recuperou, finalmente, amanhã estará aqui e gostaria de acompanhar o teste do material.

- E como vamos testar? - Marin questionou - A cobaia está morta.

- Temos outra - Ele respondeu rapidamente - Infelizmente, não poderemos envolver a Luna nisso.

- Ainda está chateado pelo que houve? Supera isso logo, o que houve foi um caso isolado, não vai acontecer de novo.

- Não se trata disso. Quando você ver, vai entender - Pela primeira vez, Marin pôde ver um olhar diferente em Noriel, algo que se não o conhecesse, poderia dizer que era insegurança - Não trarei a cobaia para o laboratório, ela estará na masmorra, primeira cela à direita.

Dizendo isso, Noriel estendeu uma chave de ferro para Marin e virou as costas para sair.

- Por que está me entregando a chave? Você não vai me acompanhar para garantir que tudo esteja certo?

- Não, vou dispensar a Luna, o trabalho dela aqui já está feito. Além disso, a cobaia não é perigosa e o teste é só amanhã.

- Então por quê está me mandando lá hoje?

- Quando ver, vai entender. Não quero que tenha surpresas de última hora.

Ainda sem processar que Luna estava sendo dispensada do trabalho, Marin rumou em direção à masmorra, impulsionada pela curiosidade do que havia de tão importante lá para que Noriel tomasse tal atitude. Marin estava decidida a nunca mais confiar em nenhum selenita desde o que houve com a cobaia anterior. Definitivamente, todos os selenitas que se opuseram a Klaus já haviam sido mortos ou tido seus poderes drenados, portanto, qualquer um que ela encontrasse era inimigo e não merecia nem mesmo uma fagulha da sua piedade.

Chegando ao térreo, desceu mais um lance de escadas e abriu a porta de ferro que levava à masmorra, utilizando a chave que Noriel lhe deu. Descendo um novo lance de escadas, virando à direita e direcionando-se às celas, todas as suas convicções desceram garganta abaixo.

Sentada no chão, acorrentada e choramingando, encontrava-se uma criança vanar, de pele branca, cabelos lisos e pretos. Percebendo a chegada de Marin, encolheu-se mais ainda.

- O… Oi - as palavras pareciam ficar presas na garganta de Marin - Não se assuste, não vou te machucar.

Dizer aquelas palavras doeu ainda mais no peito, afinal, ela estava ali justamente para machucar a criança.

- Qual seu nome? - Marin perguntou.

Percebendo que a criança ainda desviava o olhar, continuou.

- Vamos, o meu é Marin, me diz o seu, talvez eu possa lhe ajudar.

Na última frase, a menina levantou a cabeça, revelando olhos lacrimejantes de esclera amarela e íris azul.

- Lya.

- Lya, muito prazer. Como você veio parar aqui?

Soluçando, a criança respondeu:

- O homem mau levou minha mamãe, depois me levou…

- Foi o imperador que levou sua mamãe?

- Não sei, era um homem mau, mas tem muitos homens maus. Minha mamãe está aqui também?

- Não sei, podemos buscar juntas. Olha… Eu  sei que isso parece assustador, mas… - Marin pensou algumas vezes, afinal, se fizesse o que estava prestes a fazer não teria volta - Posso te tirar daqui. Eu vou te tirar daqui!

Levando a mão até a tranca da cela, concentrou-se e fez novamente uso da transmutação para modificar a estrutura do metal sólido em algo mais quebradiço. Tendo finalizado, utilizou seu fluxo mágico para potencializar sua força muscular e arrebentou a trança com um chute frontal. Suas roupas, como a de qualquer arcano, era leve e possibilitava movimentos de luta ou conjuração, além de ser completamente fechada até os pulsos e tornozelos, permitindo que fosse usada em laboratório da mesma maneira.

Ao se aproximar, tentou repetir o mesmo processo com os grilhões que prendiam a menina, mas não teve força para rompê-los sem um efeito de alavanca, mesmo aumentando a força muscular. Então, tentou com a estrutura metálica que prendia as correntes à parede, enquanto puxava assunto para acalmar a criança.

- Quantos anos você tem? Teria idade para ser minha filha, sabia? - No fundo, Marin sabia que era por isso que a estava soltando.

- Dez.

- Espera, dez? Seus poderes já se desenvolveram?

- Não… mamãe disse que só depois dos 12.

Esse era um conhecimento que Marin já tinha, alguns selenitas desenvolviam seus poderes com 13 ou 14 anos, mas nunca antes dos 12. Se ela não tinha desenvolvido, por que estava ali? Como Noriel a tinha capturado?

Terminando de soltar as correntes da parede, Marin utilizou seus sentidos mágicos para observar o fluxo da menina, percebendo que se comportava de maneira semelhante ao do jont, apenas um pouco mais fraca.

Para Marin, utilizar os sentidos mágicos era algo quase natural, mas levou mais de três décadas para adquirir maestria nessa habilidade. Não era algo comum entre os arcanos, mesmo para os mais velhos, sendo mais comum entre os profissionais daquele campo da pesquisa, como ela e Luna. Sendo assim, achava pouco provável que alguém tivesse feito essa análise previamente, principalmente por Noriel não ter essa capacidade.

Agarrou a mão da criança e a puxou para fora da cela. Não sabia como daria continuidade à sua pesquisa, mas não seria dessa maneira.

Chegando no primeiro lance de escadas, avistou Noriel, descendo.

- Marin, o que está fazendo? - Ele perguntou - Não pode levar a cobaia daqui. Achei que você fosse mais forte que a Luna.

Afastando-se da escada e colocando a criança atrás de si, Marin respondeu:

- É isso que fazemos agora? Lutamos contra crianças?

- Não é tão simples Marin, você não entende, você não pode levar essa criança daqui - Noriel disse, com um olhar preocupado.

- Você não pode estar falando sério - Marin insistiu - Venha comigo! Eu admito, também não sei o que estou fazendo, mas não dá pra continuar com isso, estamos falando de uma criança, droga!

- Ela não é a única criança que está em perigo aqui.

- O quê? O que está dizendo? - Marin questionou, confusa, enquanto a criança vanar se abraçava em suas pernas, com medo.

- Minha esposa era uma selenita - Noriel disse - Por consequência, meu filho também é um… Tudo o que estou fazendo é pela segurança dele. 

- Noriel, eu não tenho nem como imaginar pelo que está passando, mas deve ter uma forma mais correta de resolver isso.

- Você tem razão, não tem mesmo como imaginar. E não venha me dizer que uma criança qualquer é mais importante do que a vida do meu filho, você não sabe o que é ter filhos!

Dizendo isso, Noriel levantou a guarda, com as duas mãos espalmadas para frente, em uma postura de combate típica dos arcanos.

- O imperador está com seu filho? É por isso que está com medo? Nós conseguimos a arma, Noriel, podemos vencê-lo - Marin insistiu, dessa vez afastando a criança do seu corpo, para caso fosse precisar entrar em combate.

- Não é do imperador que devemos ter medo…

Antes que pudesse continuar, Noriel abaixou o corpo e aplicou um golpe, atirando Luna sobre seu ombro e fazendo com que ela rolasse escada abaixo, obrigando Marin a se afastar alguns passos para trás, levando a criança.

- Achou que ia me atingir de novo com o mesmo truque? - Noriel falou - Tentei salvar sua vida Luna, se não quer, então a decisão é sua.

- Luna, você está bem? - Marin perguntou, mantendo os olhos em Noriel enquanto Luna levantava.

- Estou… digo, vou ficar. Não me diz que essa era a nossa próxima cobaia - Luna olhou para a criança segurando nas vestes de Marin.

- Sim, mas o ponto aqui é que eu não consigo convencer o Noriel de que ele está errado.

- Então o convencemos de outra maneira - Luna levantou a guarda, também em posição de luta.

Noriel riu.

- Vocês realmente acham que podem me vencer? Eu não fui selecionado para caçar selenitas atoa. Enquanto vocês praticavam o que chamam de ciência, eu estava treinando para aprimorar minhas habilidades.

Dizendo isso, Noriel fez um movimento rápido de mãos e toda a umidade do ar à sua frente condensou, rapidamente voltando a evaporar e criando uma nuvem de vapor que ocultava a visão de Marin e Luna.

No segundo seguinte, como um relâmpago, Noriel acertou a barriga de Luna com um chute, liberando uma descarga elétrica que a atirou para trás, derrubando Marin e Lya juntas.

- Parem ou vão perder - Ele disse.

Anulando o efeito da eletricidade, por ter versatilidade com arkhé, Luna rapidamente se pôs de pé e criou um arco elétrico entre suas duas mãos, lançando em direção a Noriel como um chicote elétrico, mas que ele desviou com facilidade.

- Luna, ele está utilizando o fluxo mágico para aprimorar força e velocidade, temos que utilizar ataques em área.

Noriel tentou novamente utilizar a camuflagem com vapor, mas dessa vez Marin o impediu bem no meio de sua ação. Primeiro deixou que ele condensasse o vapor, depois impediu que ele evaporasse novamente, dessa vez criando cristais de gelo e atirando-os contra Noriel.

Utilizando os braços, Noriel expandiu duas correntes de ar para as laterais, de forma que os espetos de gelo não o atingissem em cheio, despedaçando-se à sua esquerda e direita.

Lya afastou-se correndo e voltou para dentro de sua cela, para se proteger.

O lugar não era muito espaçoso, tendo apenas um corredor estreito de uns 3 metros de largura por uns 10 de comprimento. Como Noriel estava na beira da escada, Marin tentou deixá-lo encurralado. Lançando uma lufada constante de ar com as duas mãos, Marin forçou a agitação do seu fluxo para que o ar aquecesse, na intenção de criar uma labareda de chamas. Luna, percebendo a intenção, utilizou a mesma técnica para auxiliá-la, de forma que Noriel precisava proteger-se com as duas mãos para frente, direcionando o fluxo para as laterais.

De forma rápida e inesperada, Noriel colocou o pé na parede em suas costas e impulsionou seu corpo para frente, com toda velocidade, direcionando seu fluxo mágico para o punho, de forma que cortasse o ar com mais facilidade. Em um segundo, Marin estava encurralando Noriel, prestes a incinerá-lo, no outro, Noriel estava com o punho coberto de sangue, atravessando o abdômen de Luna.

- Desculpa, eu realmente tentei te salvar - Ele disse.

Marin, preenchendo seu peito de fúria e angústia, lançou-se contra Noriel com as duas mãos, gritando, na intenção de congelá-lo.

Por estar com apenas uma das mãos livres, Noriel segurou um dos antebraços de Marin com a mão esquerda, puxou o punho direito para fora da barriga de Luna e deu uma cabeçada no nariz de Marin. Infelizmente para ele, não foi rápido o suficiente para segurar o outro braço, esse que Marin usou para segurar com firmeza em seu ombro direito e causar uma geladura grave.

Quanto a Luna, assim que o punho saiu de sua barriga, seu corpo desabou no chão de pedra já ensanguentado.

- Você a matou! - Marin gritou, recusando-se a soltar o ombro de Noriel e congelando-o com todas as suas forças - Seu covarde!

Aproveitando que estava segurando o antebraço de Marin, Noriel concentrou em seus dedos e aplicou uma descarga elétrica na intenção de neutralizá-la. Infelizmente para ele, seu ombro esquerdo estava em contato com Marin, e por estar congelado, não pôde anular os efeitos do próprio feitiço, como Luna fez com ele anteriormente. Dessa forma, a descarga dividiu-se entre os dois e ambos caíram no chão, ainda entrelaçados.

Como a descarga não foi suficiente para paralisar seus músculos, Noriel rapidamente se recuperou e aplicou um soco no rosto Marin, de forma que ela rolasse seu corpo e ficasse de costas para o chão. Colocando-se sobre ela, Noriel aplicou mais três socos, um atrás do outro, fazendo com que Marin perdesse completamente as forças.

Lutando para se recuperar, Marin não era mais capaz de lançar qualquer feitiço, pois havia utilizado tudo o que tinha para congelar o ombro de Noriel, em seu momento de fúria.

- Sinto muito Marin, meu filho precisa de mim, eu prometo que serei rápido agora - Erguendo o único braço funcional, Noriel deixou todos os dedos retos e concentrou seu fluxo mágico na ponta deles, em formato de lâmina, preparando-se para dar o golpe final.

Marin não tinha mais nenhuma força, nem alternativas, então aceitou a derrota, fechando os olhos e esperando o golpe de misericórdia. Na ponta de seus dedos, sentiu o sangue de Luna, ainda quente no chão. Se não tivesse utilizado toda sua energia de forma estúpida, aquele sangue lhe seria muito útil e poderia lhe salvar a vida. Enquanto pensava isso, sentiu que seus dedos estavam ainda mais quentes, não apenas pelo sangue, mas por uma sensação que havia sentido diversas vezes nos últimos dias. Abrindo os olhos, viu que os dedos de Luna tocavam os seus, e onde antes não havia energia nenhuma, agora era preenchido pelo que restava de sua companheira, que lhe auxiliava em seus últimos minutos de vida.

Com um novo fôlego, esquivou-se no último segundo para o lado, perdendo uma parte dos seus cabelos com o golpe de Noriel, direcionado para sua cabeça. Manipulando o sangue de Luna, Marin rapidamente o moldou e congelou no formato de uma lâmina improvisada, cravando na lateral do corpo de Noriel, que caiu e gritou de dor.

Sem perder um segundo sequer, Marin lançou-se para cima dele, desferindo novos golpes, um atrás do outro, no rosto, no pescoço, no peito, em todos os lugares que conseguia acertar.

- Eu… também… aprimorei… minhas… habilidades… seu… doente! - Marin repetia a cada golpe que dava, até perder totalmente o fôlego.

Quando terminou, a lâmina já estava parcialmente desfeita, o rosto de Noriel estava desfigurado e sua mão estava cortada, por segurar uma lâmina de gelo improvisada sem cuidado algum.

Virando-se para Luna, esperando encontrar apenas um corpo imóvel, surpreendeu-se ao ver que Luna ainda mantinha uma das mãos levantadas, estendida para Marin, fechada. Sem entender, Marin apenas segurou o punho de Luna, gentilmente, sentindo o braço da amiga amolecer e finalmente sucumbir ao sono final.

Antes de soltar, percebeu que havia algo entre os dedos dela, metálico. Abrindo a mão de Luna, lá estava o pingente, aquele que sempre estava em seu pescoço, representando Vitra, a deusa da sabedoria.

- Tá bem, você venceu… - Marin falou em voz baixa, sem saber como reagir à situação - Não estou em posição de negar sabedoria alguma.

Tomando um tempo, despediu-se e fechou as pálpebras de sua amiga. Ao lado estava o corpo de Noriel. Marin ficou triste, pois imaginou o que seria do filho dele agora, mas não deixava de sentir raiva pelo que ele havia acabado de fazer. Virando-se novamente para Luna, fez um último afago em seu cabelo e limpou as lágrimas que escorriam em seu rosto.

- Obrigado Luna, você me salvou.

Levantando-se, respirou fundo antes de falar:

- Tudo bem… não estou acostumada, mas tentarei. Me responda, Vitra, o que eu devo fazer agora?  - Marin segurava o pingente que agora estava em seu pescoço, enquanto olhava em direção à cela de Lya.

Pensou em roubar o novo metal criado e sumir dali com a criança, mas achou insensato. Além de ter que ir até o laboratório completamente ensanguentada, Olander havia observado a criação do material, desde a teoria até a prática. Considerando os conhecimentos do arcano maior, sabia que ele podia facilmente replicar o feito agora que já havia sido realizado. Pensando agora, talvez ele pudesse ter conseguido sozinho, será que em algum momento ele realmente precisou dela?

Não importava, nada daquilo importava mais, ela só precisava dar um jeito de sair dali. Caminhou em direção à cela e se abaixou diante da criança encolhida no canto. Afagou-lhe os cabelos e forçou um sorriso, mas que logo se tornou verdadeiro, quando a criança a abraçou.

- Está tudo bem, ninguém mais vai lhe machucar, eu prometo.

Ainda não sabia o que faria e como faria, mas seja por decisão própria ou por influência divina, Marin chegou a uma conclusão: naquele momento, a decisão mais sábia a se tomar era apenas seguir o seu coração.


Lladepor'tt, Império Unificado - Ano 707 da segunda era


Caminhando em passos leves e orgulhosos, Olander Idri’ll alep Silifant adentrou no grande salão real, lugar que um dia havia sido o centro do poder político de Zirael. Onde antes haveria pelo menos uma dúzia de guardas armados, agora o salão era protegido por apenas um homem, o mesmo que estava sentado ao trono, aguardando sua chegada.

Assim como sua grande barba e seus longos cabelos, suas vestes e seus olhos eram escuros como a noite, tornando-o quase oculto com a iluminação local, permitindo-o ser visto devido às luzes bruxuleantes emitidas pelas tochas nas paredes.

Contrastando com a aparência sombria e monocromática do imperador, destacava-se uma flor, grande e vermelha, colocada sobre sua orelha direita.

- Estagnar-se em um único trono não combina com você, Bartolomeu - Olander disse, recebendo um olhar frio de volta.

- Você me disse que traria novidades promissoras, então seja breve - O imperador respondeu secamente.

Olander não era acostumado a ser tratado daquela maneira, então respirou fundo para conter sua irritação.

- Sim, eu tenho algo novo. Como já discutimos, não dá para matar deuses, mas com isso… - Olander retirou de suas vestes uma pequena esfera metálica, revestida por uma camada de vidro - Com isso poderemos aprisioná-los.

Erguendo a mão direita, a esfera saiu da mão de Olander e sobrevoou o salão até ficar diante do imperador, onde ele a observou mais de perto.

- A sensação é incômoda, principalmente do núcleo.

- Acredite, não vai querer tocar na parte metálica.

- E como exatamente o utilizaremos? - o imperador perguntou, devolvendo para Olander a esfera que flutuou de volta para o dono.

- O revestimento está imbuído com um pequeno feitiço, vai ser o suficiente, só precisará entrar em contato com um.

- Você não tem permissão para criar ou para destruir algo. Devo saber quem fez isso para você?

- Não tem relevância, o que importa é que está feito, podemos partir para o próximo passo.

- E como isso ajuda em meu objetivo?

- Uma coisa de cada vez… tudo acontecerá no tempo certo, eu prometo.

- Não venha falar de tempo para mim como se eu o tivesse - O imperador respondeu com irritação - Entre eu e você, tempo possui diferentes significados.

- Garanto que seu objetivo será cumprido, sem falhas, assim como o meu.

- Só não esqueça de uma coisa - O imperador inclinou-se no trono, buscando olhar no fundo dos olhos de Olander - Eu não busco vingança, isso é coisa sua. Meu objetivo é apenas um e para cumpri-lo estou disposto a enfrentar deuses. Não ache nem por um segundo que serei manipulado por você. Caso minha confiança seja abalada, eu mesmo o destruo, pessoalmente.

Olander cerrou os dentes novamente, irado, antes de dizer:

- Não se esqueça, Bartolomeu… Sem mim você nunca seria o que é hoje.

- E sem mim, você nunca voltará a ser o que era.

Com olhares firmes, ambos se encaravam, sem abaixar a cabeça, como se disputassem silenciosamente quem estava no controle da situação.

- Meu progresso já foi reportado - Olander quebrou o silêncio - Quando poderei entregá-lo pessoalmente para que possa dar continuidade ao plano?

- Em breve - O imperador respondeu, ainda com uma postura firme - Apenas aguarde que entrarei em contato. Até lá, cumpra com suas obrigações.

Sem esperar uma resposta, a figura do imperador se desfez em uma nuvem de sombras, deixando apenas Olander no grande salão vazio.

- Pff - Olander bufou - Criança insolente.

Para ele era frustrante ir até ali para ter uma conversa tão breve, principalmente quando sabia que o imperador possuía meios de lhe contactar com muito mais facilidade. Ainda assim, isso não o abalava, pois o seu plano estava progredindo exatamente como havia planejado.

Virando-se para a saída, guardou a esfera no bolso e se retirou, deixando para trás apenas o salão vazio, o qual certamente ainda seria palco de grandes eventos.



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6 Comentários

  1. FINALMENTE!

    Rapaz, então foi assim que o Gumash perdeu os poderes! Certeza que esta história aqui se passa, ao menos parcialmente, antes da história do Guma!

    Então é assim também que o metal foi criado... E agora tem ainda um monte de dúvidas pra se responder, inclusive o que aconteceu com a Lana (certeza que boa coisa não foi) e chama a atenção também como a Lana mesmo ausente ainda assim as flores permanecem uma parte frequente na história! E pelo visto Klaus precisou ainda de outro para chegar onde tá, é? Me pergunto como isso aconteceu...

    Enfim, muito bom, senhor Ed! Este é sem dúvida o cap mais técnico até aqui, lembrou até ensaios e coisas de escola, e me espanta a dimensão do seu conhecimento. Conseguiu deixar uma história ficciosa bastante "crível" digamos assim, e ampla também! É tanta coisa pra ver, e nomes e idiomas e nossa... Sério, chego quase a me perder às vezes, hahaha!

    Bom, já pro próximo cap espero que saia em breve pois realmente quero mais desta história. Conhecendo você tenho certeza que será um cap incrível, parabéns pela sua criatividade e empenho!

    E é claro muito obrigado também ao Shady por postar isso aqui. E aliás, cadê K.G? Tô esperando!!! Hahaha muito bom mesmo, pessoal, parabéns e obrigado! Acho inclusive que vou ler tudo de novo, já pela terceira vez, pra poder me situar melhor na história!

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    1. Primeiramente, muito obrigado Sr Marcio, como sempre o seu comentário me enche de alegria e inspiração.
      Sei que é um pouco confuso as linhas do tempo, então vou me permitir clarear algumas coisas haha. A história do mundo de Zara se divide em três eras, sendo que até o momento os contos se passaram na segunda (ambição, sofrimento e sabedoria) e na terceira (sofrimento) era. O conto de Marin ocorre entre o ano 706 e 707 da segunda era, enquanto o "incidente" de Gumash com o metal ocorre apenas no ano 730 dessa mesma era.
      Algumas coisas vão demorar a ser explicadas, mas no momento certo elas serão, não se preocupe Sr. Mesmo nesse conto existem perguntas que talvez nem sejam notadas, mas que serão respondidas em outros momentos. Tudo possui uma razão para acontecer, ou pelo menos eu o planejei para ser assim.
      Enfim, grato de verdade Sr.

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    2. A maravilha de antologias está nessa conexão que só se estabelece por completo ao término da obra, porém cada conto basta em sua trama isolada. Acho tão incrível a forma como sr Ed constrói e idealiza sua narrativa em torno do título e tema e cada capítulo, como cada raça e elemento da história ganha mais significado a cada conto, mas parece já tão completo quando surge pela primeira vez.

      Fico perplexo pelo tamanho dessa história, ela é tão grandiosa e rica. Um fruto de uma mente poderosa.



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    3. Obrigado sr Ed, você tem um talento sem igual, e essa é uma das melhores histórias que já conheci. Obrigado por me permitir mostra-la.

      E sr Marcio, voltarei a desenhar logo, prometo!!!

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  2. Haaaaa eu sabia! Sabia que foi daqui que veio aquela esfera que foi a queda do Gumash!

    E é bem como o Shady disse,a história toda é bem ampla e rica. Daria uma série de tv estilo Game of thrones e até mesmo um jogo tipo World of Warcraft! São afinal tantos seres e histórias.... E mesmo assim cada conto dá a impressão de ser único. Tipo começa ali e acaba ali.

    Agora é esperar pra ver o que vai acontecer no próximo cap. Gosto muito como cada um tem a numeração e abaixo uma palavra que será o tema, bem como o fato também de cada palavra ter uma cor.

    E sim, acho bom mesmo você escrever logo, Senhor Shady! O Ed é com Zara e você é com K.G! Afinal quero muito ver o que mais nos aguarda em Olustrel e os últimos caps foram simplesmente chocantes! Bola pra frente, os dois, que quero mais!

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  3. Legal que o final é exatamente dando a deixa pros eventos finais de Ambição. Há sutis alusões à Fome, e tem aquela passagem que leva direto pra Sofrimento, inclusive lembrei muito por conta do "interrogatório", e mesmo assim, a história tem um tom único e essa pegada científica. Cada capítulo carrega fortemente sua essência né não.

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