História: O Mundo de Zara - Sofrimento - Por Sr Ed

Hoje trago mais um texto que me deixou impressionado, escrito por Sr Ed.

Este é o segundo capítulo, de um conjunto de histórias que se ambientam em um vasto mundo de fantasia. O que considero o primeiro capítulo (não há uma ordem exata para se ler), é o conto de um kruig. Agora, vem o conto de um selenita, mostrando como este mundo é cruel pra quem é "diferente".

O que é um "selenita"? O que há de tão terrível neste mundo? O que acontecerá com o jovem forjado para sobreviver? Bem, leia e saberá!

Além disso, aqui há mais algumas revelações e explicações sobre o mundo de Zara. Sempre no tempo ideal, com a descrição adequada para que entendamos, sejam datas, nomes, termologias, ou tradições. Prepare-se para um pouco mais desse lindo, porém trágico conto de "O Mundo de Zara".

SOFRIMENTO


Boa leitura

Estunia, Partemus - Ano 166 da terceira era


Forte é o guerreiro que quando mutilado pela lâmina inimiga deixa de ser apenas a carne e se torna o próprio sabre. Este fará seus inimigos tremerem e moverá nações

~ Zir Aldrich Galiel, século I da primeira era.



"No início, havia o Caos

Do âmago de sua solidão surgiu a Ordem

Ambos conflitaram, mas enfim, o amor descobrem

O Caos sentiu-se bem, amor assim nunca houve igual

E como fruto dessa união, criou o Pai, o primeiro Primordial

O Pai criou o mundo, o nosso e muitos mais

Agradando o seu criador e a Ordem por iguais

A Ordem gostou do que viu, mas faltava-lhe algo mais

Se gerasse um novo fruto, certamente estaria em paz

Desejou que fosse bondosa e com misericórdia sem igual

A partir desse desejo, criou a Mãe, a segunda Primordial

Da mãe surgiram os seres vivos, diversos e abundantes

Ela os moldou um a um, lhes dando mentes tão brilhantes

Esse brilho só cresceu, tornando-se ofuscantes

E a criação do Pai, já não era como antes

Conhecendo o desequilíbrio, soube que não era normal

Assim o Caos criou a Morte, o terceiro Primordial

A Mãe se entristeceu, pois, suas crias tornavam-se pó

Sentindo-se desolada, desejou-lhes um destino melhor

A Ordem se compadeceu e não queria lhe ver mal

Então criou a Vida, o quarto Primordial

Da Vida veio a alma e a eternidade espiritual

Pois o corpo cedia à Morte, mas o espírito permanecia igual

Caos e Ordem se agradaram e decidiram que era a hora

Mas precisavam de algo mais, antes de poderem ir embora

Unidos como um só, fizeram sua última criação

E como quinto Primordial, foi criado o Guardião.”


    Como se fosse em um coral, as crianças terminaram de recitar o conto da origem, criado didaticamente pela mãe Antonieta Balloart a mais de um século, sendo ela uma das sacerdotisas do templo da Mãe com maior relevância histórica.

Luke era uma das crianças mais brilhantes do orfanato, sendo capaz de compreender as lições passadas pelos sacerdotes antes de qualquer outro aluno, normalmente auxiliando seus colegas de classe durante o aprendizado. Apesar dos seus 14 anos de idade, quando se falava em desenvolvimento cognitivo Luke era capaz de deixar muitos adultos para trás, conseguindo resolver problemas de lógica complexos e debatendo de igual para igual com um adulto em diálogos profundos. Ainda assim, Luke havia envelhecido demais e a chance de conseguir ser adotado por alguém reduzia a cada dia, se esforçando diariamente para compensar isso auxiliando os sacerdotes em todas as tarefas. Não que isso lhe fosse cobrado de alguma forma, mas aquela era a única família que Luke conhecia e lhes era muito grato por cuidarem dele.

O orfanato, assim como a maioria dos outros pelo continente, era vinculado ao templo da Mãe e sobrevivia do dinheiro das oferendas, sendo administrado pelos sacerdotes, dos quais eram constituídos principalmente por mulheres.

Terminando a aula, Luke foi auxiliar a mãe Lucélia no preparo de alguns pães para a refeição seguinte, ele colocava um pouco de farinha, enquanto ela sovava a massa.

    - Acho que já está bom Luke, quando a massa deixa de grudar nos dedos, esse é o ponto, tá bem? - disse Lucélia enquanto terminava de amassar - Agora precisamos deixar o fermento agir um pouco, depois vai pro forno.

    - Já está bem quente, ainda quer que eu pegue mais lenha?

    - Não, já está bom, obrigado. Você queria me perguntar algo antes, não é?

    - Sim, como é possível que a morte tenha vindo antes da vida? - Luke falou enquanto batia a palma das mãos para tirar o excesso de farinha.

    - Bem, a vida que conhecemos não é a mesma que você está se referindo. A vida que temos nos foi dada pela Mãe, a Vida como entidade primordial permite que ainda continuemos a existir mesmo após a nossa morte.

    - Então não seria melhor que só não existisse a Morte?

    - Bem, a Mãe foi criada primeiro, antes da criação da Morte tudo era eterno, toda a criação dela durava para sempre. Consegue imaginar isso? Se nenhum ser vivo morresse, não haveria equilíbrio, é preciso que tenha um ciclo. Desculpa Luke, não quero confundi-lo, você vai entender no tempo certo.

    - Não, acho que entendi. A Vida permite que a criação da Mãe seja eterna, mas a Morte permite que a criação do Pai se preserve.

    - Mas que menino esperto, daqui uns aninhos já vai poder assumir o lugar de um dos irmãos viu?

    - Bem…

Ouviu-se um barulho de correria e rapidamente o irmão Jonas entrou na cozinha, esbaforido.

    - Mãe Lucélia, mãe Lucélia! Eles estão aqui de novo, esconde ele!

    - Santa Mãe! Até quando isso? Venha Luke, já sabe o que fazer. Fique no seu esconderijo e não saia por nada, ouviu bem? Por nada!

Normalmente Luke se refugiava em um compartimento abaixo da mesa da Mãe Lucélia, escondido sob um piso falso dentro do escritório dela. Como de costume, correu naquela direção, mas dessa vez, como já havia planejado anteriormente, resolveu tomar um caminho diferente.

O templo tinha três andares, as paredes e o piso eram de pedra, com alguns cômodos possuindo piso de madeira. A entrada levava direto para o local de adoração, um grande salão com cinco fileiras de bancos à esquerda e cinco à direita. As paredes eram decoradas com quadros dos cinco Primordiais: O Pai, a Mãe, a Vida, a Morte e o Guardião. Cada quadro era alinhado em relação às fileiras de bancos correspondente, que possuíam entalhes representando os cinco deuses Maiores, de acordo com sua divindade primordial associada: Zara, a terra, criação do Pai; Dorin, o ar, criação da Mãe; Oásis, a água, criação da Vida; Frauduin, o fogo, criação da Morte; e Arkhé, o elemento primordial representado por um raio, criação do guardião. Ao fundo do templo havia um pequeno altar e uma grande estátua de uma mulher sem rosto com os braços abertos, representando a Mãe. Aos dois lados do salão havia portas que levavam para corredores, direcionados à enfermaria e sala de aula à esquerda e cozinha e o escritório da mãe Lucélia à direita, tendo escadas ao final do corredor que levavam ao segundo piso, onde haviam os quartos em que os residentes dormiam. O terceiro piso servia apenas para acomodar o sino, que era tocado em todas as manhãs de bast.

Algumas vezes os soldados apenas passavam direto, às vezes pediam para que todos saíssem e às vezes verificavam os documentos de todas as crianças que estavam no arquivo do templo. De uma forma ou de outra, Luke nunca os via, permanecendo sempre escondido no lugar que lhe mandavam. Isso estava para mudar hoje, ele queria ver quem eram os seus perseguidores e por que deveria temê-los tanto assim. Para isso, permaneceu no escritório até que o som de passos no corredor cessasse, depois saiu de fininho e subiu as escadas até a torre do sino, onde ficaria olhando do alto, a uma altura que não era superior a três andares.

De lá, pôde ver quem eram os seus inimigos. Haviam quatro homens em cavalos armadurados, dois já haviam descido e dois ainda estavam montados. De longe os homens pareciam altos, todos usavam capas por cima de armaduras negras, com um elmo que deixava apenas os olhos à mostra. Além do preto, a armadura possuía alguns detalhes em vermelho, incluindo a assustadora estrela tortuosa que estava estampada no peito e na capa, representando o símbolo daquela ordem.

A visão daquela estrela foi o suficiente para fechar a garganta de Luke, que permanecia o mais abaixado possível, tomando cautela para não ser visto.

Dali, Luke não conseguia entender muita coisa pois as vozes estavam baixas, com exceção do que um dos soldados dizia, já que este só se comunicava aos berros.

    - Todos alinhados!!!

Em seguida, Luke viu todos se alinharem. Mãe Lucélia, irmã Dolores, irmã Mirna, irmã Vanya e irmão Jonas. Ao lado, como em uma escala de maior para o menor, estavam as crianças do orfanato: Vini, Luna, Gus, Lúcio, Pedro, Matilde e Duncan.

Depois o soldado disse algo que Luke não pode ouvir e a mãe Lucélia respondeu, mas também em um tom inaudível àquela distância.

    - Tem certeza que estão todos aqui? E se eu for lá dentro e achar mais um, hein? E aí como fica? - disse o soldado, novamente alterando o tom enquanto o segundo permanecia parado com a mão apoiada no cabo da espada embainhada na cintura.

Novamente mãe Lucélia respondeu enquanto os demais permaneciam calados. O soldado se virou para um dos que estavam no cavalo e perguntou:

    - Quantos eram na última contagem?

O homem respondeu em baixo tom e o soldado novamente virou-se para Lucélia, perguntando:

    - Cadê os outros!?

Mãe Lucélia o respondeu com algumas poucas palavras e o soldado pareceu acalmar os ânimos.

    - Adotados, sei. Espero que os documentos estejam em dia.

Irmão Jonas rapidamente puxou alguns papéis e entregou ao homem que estava de pé com a mão no cabo da espada. Depois de uns dois minutos avaliando, o homem fez um meneio positivo com a cabeça para o outro soldado de pé e devolveu os papéis. Logo depois, ambos trocaram algumas palavras e para grande surpresa de Luke, os dois sacaram adagas. De longe, as lâminas pareciam ser extremamente polidas, pois o brilho prateado refletia com intensidade na luz do sol.

O coração de Luke acelerou ainda mais, teve vontade de gritar, mas mesmo que não precisasse ficar escondido, era provável que o medo não lhe permitisse exprimir som algum.

Os soldados falaram alguma coisa e todos estenderam a palma da mão para frente. Os soldados pegaram suas adagas e foram tocando com elas nas mãos das pessoas, sem causar ferimentos, em seguida olhando para o rosto da pessoa e depois passando para o próximo.

As crianças estavam especialmente apreensivas, mas uma delas ficou perceptivelmente mais abalada. Pedro era uma criança de apenas 9 anos, toda vez que ficava nervoso com algo ele se abaixava e abraçava os joelhos, era um costume que tinha. Dessa vez não foi diferente, Pedro se abaixou e começou a chorar expressivamente, o que irritou o soldado gritalhão. Mãe Lucélia se moveu na tentativa de ajudá-lo, mas foi interrompida pela ponta da adaga do outro soldado, que apontou na direção dela e a mandou ficar parada.

    - Tá chorando porque, moleque!? Dá essa mão aqui, tá com medo de ser pego é? - O soldado gritou enquanto levantava Pedro pelo braço e o obrigava a mostrar a mão. Em seguida, não apenas tocou sua adaga na palma da mão dele, mas fez um corte profundo com a lâmina, o que arrancou um grito da criança.

Rapidamente mãe Lucélia se adiantou para afastar o soldado da criança, mas foi repreendida por um empurrão forte do outro soldado, que dessa vez também alterou o tom de voz e gritou:

    - Fica aí!

Foi naquele dia, aquele foi o exato momento em que o ódio pela Ordem da Estrela de Sangue nasceu dentro do coração de Luke. Depois disso, todas as suas experiências serviriam para alimentar o recém nascido.

    - Tá protegendo a aberração é!? - disse o soldado enquanto segurava a criança pelo braço - Gritou por quê moleque? Tá ardendo é?

Em seguida, ergueu o braço e preparou um soco para desferir na criança, mas foi prontamente impedido por um dos soldados que estava a cavalo, que no momento havia descido e se aproximado às pressas, segurado o pulso do agressor enquanto esbravejava algo incompreensível para Luke. O homem parecia ter uma patente elevada, ele apontou para a criança, apontou para a lâmina e em seguida largou o pulso do companheiro com um safanão.

O soldado pareceu um pouco constrangido com a reprimenda, mas não se desculpou com nenhum dos envolvidos, apenas embainhou sua adaga e montou novamente no cavalo. Gritando antes de sair:

    - Deram sorte!

    Luke havia voltado antes de todos e se escondido no compartimento secreto novamente, permanecendo lá até que a mãe Lucélia fosse até ele para retirá-lo. Luke fingiu que não sabia de nada, mas estava revoltado, aquelas pessoas o estavam caçando como se fosse uma aberração. Não entendia como aqueles indivíduos inescrupulosos tinham a coragem de se sentirem melhores do que ele por conta de uma simples condição de nascença, sendo que eram capazes de agredir crianças sem o menor pudor.

Sentiu-se mal por Pedro, sentiu-se culpado também, afinal aqueles soldados estavam procurando por ele, então achou que precisava corrigir as coisas da forma que podia.

Buscou por Pedro até encontrá-lo na enfermaria. Chegando lá, viu que a irmã Vanya estava passando uma bandagem na mão de Pedro, já havia limpado o corte, suturado e estava fechando para não infeccionar.

    - Não se preocupe, vai sarar logo logo, assim que o efeito da pomada passar você vem e me fala que eu passo mais, aí a dor vai embora de novo - dizia Vanya enquanto Pedro tentava engolir o choro.

    - Eu posso ajudar - Luke disse, recebendo no mesmo instante um olhar penetrante de repreensão.

    - Luke, saia já daqui, não é hora pra brincadeiras.

    - Não estou brincando, você sabe que eu posso.

    - Não, não pode! Além disso, não é necessário. Se não sair daqui irei contar para a mãe Lucélia. Já não conversamos com você?

    - Mas foi por minha causa que ele se feriu, não foi!?

Pedro estava sobre a cama abraçando os joelhos quando ouviu isso e levantou a cabeça em surpresa.

    - Luke! - mãe Lucélia falou da porta da enfermaria - Pra minha sala! Agora!

Luke fez uma cara de emburrado, sabendo que levaria uma bronca. Olhou para Pedro e para irmã Vanya, essa que lhe retribuiu com um meneio negativo com a cabeça. Sem opções, rumou para o escritório da mãe Lucélia.

O local não era espaçoso, o piso era de madeira e rangia quando pisava nele, as paredes eram de pedra e não possuíam nenhuma ornamentação, apenas pedra e algumas velas presas em pequenos candelabros. Além da mesa havia um pequeno armário que servia de arquivo ao canto direito da sala e três cadeiras de madeira, uma para mãe Lucélia e duas para quem quer que fosse se reunir ali. Ao fundo da sala, havia uma janela que dava vista para nada além de grama e uma vegetação já alta que precisava ser aparada.

    - O que é que você está pensando? - repreendeu mãe Lucélia assim que Luke entrou e fechou a porta atrás de si.

    - Mas mãe, ele se feriu por minha causa, eles estavam me procurando. Eu só queria poder fazer algo pra ajudar.

    - Mas não é pra isso que estamos aqui? Luke, a irmã Vanya cuidará bem de Pedro, ele vai ficar bem, você não tem que se culpar por isso. 

    - Então pra quê eu tenho isso se não posso usar?

    - Porque sua vida vale muito mais que isso menino. Além disso, não pode sair por aí falando essas coisas, as pessoas não são bobas. Todo mundo sabe que a Estrela de Sangue caça selenitas, não fique se expondo.

    - Mas o Pedro é meu amigo, e é uma criança, ele vai entender, não vai contar pra ninguém.

    - Luke, nem todas as crianças são como você, a maioria delas não é capaz de guardar um segredo simples por muito tempo. E isso não é um segredo simples, isso precisa ficar entre nós, apenas eu, você e os outros sacerdotes que podem saber disso, para sua segurança.

    - Mas como eles podem fazer isso? Como ninguém diz nada contra eles? Todo mundo permite? - Luke perguntou com uma certa tristeza na voz.

    - Todas as pessoas más possuem justificativas para suas más ações. Para os de mentes frágeis, essas justificativas são aceitáveis.

    - Mas e os deuses? Por quê eles não fazem nada?

    - As razões divinas são misteriosas, Luke. A Mãe ama toda sua criação, mas se desagrada com a crueldade, um dia isso tudo vai passar.

    - A Mãe ama os soldados da Estrela de Sangue também? - Luke perguntou, surpreso.

    - Sim Luke, toda a sua criação, inclusive os soldados da Estrela de Sangue.

    - E você, também os ama?

Um silêncio prosseguiu brevemente após aquela pergunta, Luke sabia como fazer questionamentos difíceis aos adultos e esse tipo de situação já não era nada incomum. Depois de um tempo, mãe Lucélia respondeu:

    - Não somos perfeitos Luke. Só me promete que não vai mais ser descuidado.

    - Tá bem… eu prometo.

    A semana prosseguiu como todas as outras. As semanas eram divididas em sete dias, que recebiam seus nomes baseados em astros: Bast, nurol, setol, lamol, junol, migniol e varfen, sendo que varfen normalmente era o dia em que os trabalhadores descansavam.

No templo, as crianças costumam ter aulas de nurol a migniol durante a parte da manhã, à tarde após a refeição todas elas vão ao salão central fazer orações aos deuses Primordiais e depois ficam com o tempo livre para brincar ou ajudar os sacerdotes nos afazeres diários.

No bast, os cidadãos do pequeno vilarejo de Anil, em Estunia, comparecem ao templo para ouvir os sermões da mãe Lucélia, também para adquirirem conhecimentos sobre os deuses e para fazerem suas oferendas. Como Estunia é uma região majoritariamente pesqueira, era comum que boa parte das oferendas ao templo fossem peixes. Uma parte os sacerdotes queimavam como oferenda aos deuses e outra parte era salgada ou colocada ao sol para que se preservasse, assim podia ser consumida em períodos mais longos. Com os norens obtidos, também era possível adquirir outros mantimentos e até realizar a manutenção do templo. Duas vezes ao ano também havia caravanas onde pessoas de outros templos visitavam o templo de Anil, assim traziam suas próprias ofertas, normalmente constituindo grande parte dos ganhos do templo. Uma vez ao ano os sacerdotes do templo em Anil também faziam sua própria viagem, indo até Malakka't, onde havia o templo do Guardião, no reino vanar de Zirael. Mas a viagem costumava levar um mês inteiro, sendo que permaneciam apenas dois dias lá.

Nem todos os sacerdotes podiam ir, pois alguém precisava ficar cuidando do templo e das crianças. Luke até chegou a conhecer uma vez, no ano em que completou 10 anos, lembra-se de nunca ter visto algo tão bonito quanto a arquitetura vanar e queria poder morar lá um dia. O reino dos humanos era muito mais rico que o reino dos vanar, mas lá a diferença social era perceptivelmente menor e os seus recursos eram mais bem distribuídos. Quando perguntou isso a um sacerdote vanar, este lhe respondeu que um vanar podia viver mais de 370 anos, então ver um de sua espécie morrer de fome era inadmissível, enquanto os humanos estão mais preocupados com a própria sobrevivência, já que a vida passa como um sopro.

Dessa vez, mãe Lucélia, irmã Mirna e irmã Vanya foram ao templo do Guardião, levando consigo Lúcio e Luna, que completavam 10 anos naquele ano. Irmão Jonas e irmã Dolores ficaram para cuidar das outras crianças, tentando manter o ritmo das aulas matinais, mas com um tempo um pouco reduzido.

Era um dia de junol quando Luke saiu para brincar. Havia um vasto campo atrás do templo onde tinha uma grama mais baixa e nasciam algumas flores, um pouco atrás da horta onde eram plantados alguns vegetais. Era um terreno bem íngreme, além de ser o lugar favorito de Luke, pois como um selenita, ele conseguia correr mais rápido que qualquer outra criança, então lá era o local em que ele conseguia se soltar mais, correndo e pulando para lá e pra cá, até perder o fôlego. Estava um dia particularmente quente, então resolveu dar uma pausa e se recostar embaixo de uma figueira. Quando estava caminhando em direção à sombra da árvore, viu um menino um pouco mais ao longe, na direção da horta. Rapidamente reconheceu que era Pedro pelos cabelos encaracolados e pretos, bem diferentes dos seus que eram loiros e lisos, mas com uma altura semelhante. O menino havia se distanciado desde o incidente com os soldados e a mãe Lucélia disse que ele estava apenas abalado, que logo voltaria a brincar com as outras crianças. Luke viu isso como uma oportunidade, se Pedro estava ali fora talvez quisesse finalmente voltar a interagir, acenou para ele e o chamou para perto para que pudessem brincar juntos. Pedro não reagiu quando foi chamado, apenas abaixou a cabeça e em seguida apontou o dedo em direção a Luke.

Demorou um instante para perceber, mas um homem havia saído de trás de uma das árvores à esquerda de Luke, vestindo uma armadura leve, mas completamente negra e com uma estrela vermelha e tortuosa no peito, além da capa preta. Ele começou a girar no ar uma arma composta por três esferas de metal prateado unidas por correntes do mesmo material.

Apesar de rápido, Luke não teve muito tempo de correr quando foi atingido nas pernas pela arma voadora, que queimava como ferro em brasa. Luke gritou, mas seu corpo começou a enfraquecer, dificultando essa mínima ação. O homem rapidamente se aproximou, colocou uma das mãos em sua boca e disse:

    - Te peguei, baratinha imunda!

    Luke não lembra exatamente como foi a viagem, passou a maior parte desmaiado. As correntes em seus tornozelos nunca paravam de queimar, seu corpo parecia doente e vez ou outra acordava se engasgando com o próprio vômito. Parecia estar sendo levado em uma carroça, havia um saco em sua cabeça, mas não conseguia raciocinar direito e logo desmaiava novamente com a dor e a fraqueza causada pelas correntes que pareciam brasa.

Acordou novamente em uma sala escura, com paredes de alvenaria, grades nas portas e uma mesinha de madeira no canto direito. Estava sentado em uma cadeira com braços e pernas amarrados por cordas. Ao canto da sala havia um guarda com uma besta apontada para seu rosto.

    - Se usar algum poder eu atiro, não tenta nenhuma gracinha, a ponta é de argélio, se você tentar usar seu poder em mim eu atiro. - Logo em seguida o guarda alterou seu tom de voz e gritou - Senhor, ele acordou!

Luke ainda tentava se localizar, aparentemente as correntes que queimavam não estavam mais em seus tornozelos. Então ouviu passos se aproximando e um homem entrou pela porta. Era um humano, alto, ligeiramente acima do peso, vestia uma armadura negra com a estrela vermelha tortuosa no peito mas não usava elmo, de forma que era possível ver seu rosto. Era um homem de pele branca, careca, com sobrancelhas bem ralas e um bigode e cavanhaque preto e curto. O homem entrou na sala sorrindo e disse:

    - Olá, muito prazer! Eu sou o sargento Virílio, serei o seu anfitrião. Claro, você como meu hóspede vai ficar me devendo algumas coisas.

Ele encarou Luke com um sorriso amarelado, aguardando algum tipo de resposta. Não obtendo, ele prosseguiu.

    - Meu guarda já deve ter lhe explicado as regras, qualquer gracinha é flechada de argélio, mas não tem com o que se preocupar, tudo que eu preciso é que me responda uma perguntinha ou outra. Primeira, qual é o seu poder? Selenita.

    - Bem... - Luke respondeu - Eu consigo fazer o cabelo de alguém cair, mas cheguei tarde no seu caso - aquela havia sido uma resposta ousada, Luke estava apavorado, mas o ódio crescente lhe permitiu falar aquilo.

No entanto, a resposta que recebeu foi um soco forte no rosto, sem qualquer cautela, de um adulto direto em uma criança. Luke era um garoto de cabelos lisos e loiros, não tão longos, mas grandes o suficiente para formar uma franjinha que ia até a altura das sobrancelhas. O sargento agarrou em sua franja e gritou:

    - Barata insolente! Acho que não entendeu sua posição aqui ainda. Eu faço as perguntas e você responde, senão vai sobrar bem pouco de você no final.

Luke estava atordoado, não apenas pelo soco, mas pela situação em si. Já havia sentido dores piores antes, mas nunca havia sido vítima de tamanha violência, realmente não entendia como aqueles indivíduos conseguiam se sentir melhores que ele.

    - Você… é tão covarde de ter que prender uma criança antes de bater nela? - Luke disse com o olho esquerdo fechado, por conta do sangue que escorria do seu supercílio.

    - Não me provoque, conheço sua raça, não esqueça que tem uma flecha apontada para você.

    - E o que eu fiz pra você?

    - O que você fez? Por acaso, se você encontra um ninho de baratas você mata apenas os adultos ou você elimina os ovos? É uma pergunta retórica seu moleque, é óbvio que destruímos os ovos, senão elas crescem e se multiplicam, aí temos que ter o dobro do trabalho caçando. Então vou perguntar de novo, qual é o seu maldito poder!?

Luke não sabia como reagir à situação, então não respondeu nada, recebendo um tapa no ouvido direito que o fez deixar de escutar as palavras seguintes do sargento. Luke era uma criança brilhante, mais esperta que a maioria da sua idade, mas ainda era apenas uma criança e não havia nada que o tivesse preparado para aquele tipo de situação onde nem mesmo um adulto saberia como reagir.

Quando percebeu que o sargento havia saído da sala ele já estava voltando, só que dessa vez com uma maleta de madeira. Ele apoiou a maleta sobre a mesa e abriu, revelando uma variedade de ferramentas de tortura, que iam desde arames e pregos até uma variedade de lâminas e serras. Luke se assustou com aquela visão, principalmente quando o sargento pegou um tipo de alicate com lâmina e caminhou na direção dele, mas Luke queria parecer forte então suprimiu qualquer reação que pudesse ter, menos o ódio mortal que crescia dentro de si e que era visível em seus olhos.

    - Vai me falar ou não? - o sargento falou enquanto colocava o dedo indicador da mão direita de Luke entre as lâminas do alicate - Suponho que não seja nada muito agressivo, senão já teria usado né? Claro, não podemos esquecer da flecha de argélio apontada em sua direção.

    - Não vou… te dizer - Luke conseguiu forçar as palavras a saírem enquanto as lágrimas já brotavam de seu rosto. 

O que sentiu a seguir foi uma dor aguda quando o dedo foi decepado, seus olhos já não foram mais capazes de suprimir as lágrimas e nem sua boca foi capaz de conter um grito.

O sargento rapidamente colocou a lâmina do alicate no próximo dedo e repetiu a pergunta, aos berros. Luke sabia que não havia como mudar aquilo, dizendo ou não o que o sargento queria, então apenas escolheu o silêncio, não proferindo mais uma palavra para os seus captores.

Depois disso, tudo se resumiu a violência gratuita, o homem utilizou de quase todas as ferramentas que tinha em mãos, mutilou e agrediu repetidas vezes, até que sentiu que não havia mais o que tirar, então apenas deixou-o ali, sozinho, com dor e com fome, na esperança de quebrar o seu espírito.

Luke apenas se refugiou em seu próprio subconsciente, aproveitando-se dos pequenos intervalos entre uma dor e outra, alimentando o ódio dentro de si, sempre sem dizer uma única palavra, aqueles selvagens não mereciam conhecer o seu poder.

Grande foi a surpresa do sargento ao retornar no dia seguinte e notar que não só as feridas haviam se fechado, como o próprio dedo que ele havia decepado estava de volta no lugar, como se nada tivesse acontecido, apenas com algumas manchas de sangue seco sobre a pele e pela roupa.

    - Seu pequeno bastardinho - o sargento disse com um sorriso largo no rosto - então esse é o seu poder? Era isso que estava tentando esconder esse tempo todo? Pra que raios se segurou tanto se eu ia descobrir de qualquer jeito? - depois riu profundamente.

Luke apenas manteve-se em silêncio, prometeu a si mesmo que não trocaria mais uma única palavra com eles, a não ser no dia em que tivesse a chance de se vingar, se esse dia chegasse.

    - Já que não gosta de falar, talvez a próxima coisa que eu arranque seja a língua, o que acha? Vai crescer de novo de qualquer jeito né - o sargento olhou para o chão, onde estava o dedo que ele havia decepado no dia anterior e ficou pensativo por um tempo - Garoto, você é uma mina de ouro.

O sargento olhou para o guarda que estava ao lado com a besta na mão e disse:

    - Não precisa mais disso, chame o doutor Vangel, acho que ele vai gostar.

Passado alguns minutos, um homem baixinho e de óculos entrou pela sala segurando uma maleta. O óculos ficava pousado na ponta do nariz pequeno e os cabelos eram longos nas laterais, mas em cima era careca. Ele deu uma checada na sala antes de entrar, tomando cautela pois sabia que tinha um selenita dentro.

    - Olá sargento - o homem falava em vitra, mas carregava um sotaque típico de quem fala ma’la - Então esse é o garoto? o que queria que eu visse?

O sargento apontou para o dedo que estava no chão.

    - Aquilo ali foi o que eu arranquei dele ontem, agora olhe para as mãos dele, doutor.

O médico analisou as mãos intactas de Luke, em seguida apoiou sua maleta na mesinha e abriu, puxando um bisturi prateado e se aproximando de Luke, que estremeceu com medo, mas manteve os olhos fixos no médico, como quem o desafia. O médico se abaixou e encostou o bisturi no dedo decepado que estava no chão, ouvindo um chiado assim que tocou com a ponta da lâmina.

    - Há! - gritou o médico e deu um saltinho de alegria - Que magnífico! Isso significa que podemos pegar quantas amostras quisermos?

    - Aparentemente sim, devemos levá-lo para a capital? - perguntou o sargento.

    - Sim sim, isso pode servir muito para a pesquisa do professor Pruist - O médico disse enquanto retornava para sua maleta e separava alguns frascos - Mas preciso fazer umas análises antes. Você tem certeza que vai nascer tudo de novo né?

Luke odiava o rumo que aquela conversa estava tomando, mas manteve o seu silêncio, ainda se forçando a conter as lágrimas.

    - Sim, ontem eu acabei com ele e agora está inteiro.

    - Preciso de uma amostra de sangue, coloque nesse frasco e traga rapidamente para mim - ele separou um pequeno tubo de vidro em um canto - Também preciso de alguns dentes, uma amostra de pele… e claro… um desses olhinhos esverdeados. Esses dois últimos itens quero que coloque aqui - e separou um frasco diferente e derramou um líquido transparente dentro - Não tenho costume de trabalhar com espécimes vivos, então você coleta e eu analiso, só não demore.

O médico fechou os outros itens dentro da maleta e se retirou da sala, deixando apenas Luke, o sargento e o soldado que ainda segurava a besta mas que agora a mantinha abaixada.

- Você ouviu o doutor, pirralho, eu tenho que coletar algumas amostras.

Para Luke, aquela seria apenas a primeira de muitas coletas que seriam feitas futuramente.


Calcamor, Partemus - Ano 171 da terceira era


    Aquele era um dia propício, os krochs provavelmente nunca teriam uma oportunidade tão perfeita. Não era de hoje que o rei necromante estava causando problemas à Estrela de Sangue, mas dessa vez uma exigência do próprio rei os obrigou a tomarem medidas, afinal, essa era a única razão dessa ordem existir. Na floresta de Tar katan, região de Galagan que fazia fronteira com Partemus, teoricamente havia um selenita montando um exército de cadáveres. Há mais de um século, houve um necromante governando aquela região e por algum motivo acreditavam que ele estava de volta, mesmo que ninguém tenha colocado os olhos sobre ele. Os krochs não sabiam dizer se era um novo selenita, um antigo necromante que retornou ou somente uma história, mas sabiam que o rei estava levando a sério. Foi ordenada uma incursão rumo à floresta com o máximo de soldados que puderam reunir, o que deixava o forte Geumish extremamente desprotegido. Ainda haviam soldados, Lança conseguiu verificar com antecedência, mas não era nada com que eles não conseguissem lidar. Havia uma cela com grades de argélio que ela se recusou a chegar perto, mas que ouviu sons vindo lá de dentro, então poderia haver algum selenita lá e eles não podiam abandonar seus semelhantes.

Os krochs não passavam de um grupo de jovens inexperientes, mas Lança era uma vanar, já tinha uns bons anos de vivência e se sentia apta a liderá-los. No momento, seu corpo estava em um local seguro, enquanto sua projeção invisível acompanhava os demais membros, cuidando para que tudo saísse conforme o planejado.

    - Eu vou abrir, mas você precisa entrar primeiro, senão eles não vão olhar nos seus olhos - Elmo sussurrou para Flecha, uma pequena veneus que os acompanhava com olhinhos assustados. Em seguida, seus dedos assumiram um aspecto gasoso e tocaram a fechadura, rapidamente criando nele um aspecto enferrujado e envelhecido.

    - Vai rápido com isso! - cochichou Escudo, um kruig jovem de pele azul claro - quanto tempo vai demorar? - A voz do kruig tinha um sotaque carregado também, não por falar outro idioma, já que também falava vitra, mas os kruigs possuem o próprio dialeto que se torna perceptível em suas falas.

    - Quantos anos você acha que leva para uma fechadura dessas envelhecer, idiota? - respondeu Elmo cerrando os dentes, se segurando para não gritar com o companheiro.

    - Shiu, por favor, não façam barulho, a Lança tá ouvindo tudo - Disse o quarto companheiro abaixado, um humano de aspecto tímido que se autodenominava como Adaga.

    - Já é o suficiente, eu acho - Elmo disse quando a fechadura já possuía um aspecto completamente enferrujado e degradado - agora é tua vez Adaga, depois já sabe, se esconde - Ao terminar de dizer, o próprio Elmo tomou uma posição atrás da paliçada de madeira, de forma que quando a porta abrisse, os guardas que estavam lá dentro não teriam a visão dele.

Escudo também tomou uma posição semelhante, se abaixando ao lado dos cadáveres de dois guardas que haviam sido abatidos previamente, enquanto Adaga e Flecha permaneciam na frente da porta.

Adaga tocou a ponta do seu dedo indicador sobre a fechadura e essa rapidamente soltou um estalo e pulou longe, alertando os guardas que estavam lá dentro. Adaga se escondeu junto dos outros, enquanto Flecha empurrava a porta, dando visão para o interior do pequeno forte.

Os guardas alertados sacaram suas espadas, mas ao olharem para fora a única visão que tiveram foi a de uma criança veneus de orelhas pontudas, olhando para dentro com o olhar assustado. Um segundo depois, os três infelizes caíram ao chão desacordados.

    - Boa garota - Elmo disse enquanto afagava a cabeça de Flecha e entrava no forte, junto dos outros - Agora fique para trás, por favor. Adaga, me ajuda a finalizar esses cretinos.

Elmo colocou as mãos sobre o rosto de dois dos soldados que haviam caído lado a lado, suas mãos assumiram o mesmo aspecto gasoso e escuro, enquanto o rosto dos soldados tomou um aspecto envelhecido e enrugado, até que começassem a se desfazer em pó. Adaga moveu-se até o terceiro soldado caído e colocou a ponta de seu dedo na testa dele, causando uma erupção de sangue do nariz e dos ouvidos do infeliz.

    - Terminei - disse Adaga.

    - Tá bem, a Lança disse que era por esse lado - Elmo guiou os companheiros - Escudo, cuide da Flecha.

    - Sempre - respondeu Escudo, colocando-se em frente à criança veneus.

O local era cercado por uma alta paliçada de madeira, com apenas uma entrada e seis torres de vigia. As construções no interior eram de madeira ou de pedra e variavam de tamanho.

O grupo atravessou o pátio central, Lança havia lidado sorrateiramente com os atiradores nas torres, então foi um problema a menos. O lugar era relativamente grande, segundo as informações de Lança o local possuía sala de armas, dormitórios, campo de treinamento, estábulo, masmorra e até mesmo um pequeno laboratório. No momento, o grupo se encaminhava para a masmorra, destruíram mais uma porta, desceram algumas escadas e mataram mais dois soldados em uma pequena câmara com paredes de concreto e um corredor com 6 celas, todas com portas de metal que possuíam pequenas janelinhas com barras de argélio.

    - Ela disse que era a segunda à esquerda, mas essa porcaria é de argélio, como que eu vou entrar aí? - perguntou Elmo.

    - A chave, troncho, esses guardas devem ter - Escudo respondeu.

    - Posso derrubar a parede? - perguntou Adaga timidamente.

    - Não, a Lança disse que as paredes provavelmente possuem vigas de argélio, não acho que ia dar.

    - Tá bem, as chaves podem ser uma boa ideia, se elas também não forem de argélio. - Adaga disse enquanto buscava nos bolsos de um dos soldados.

    - Aqui, são de ferro - Flecha apontou para um molho de chaves penduradas ao lado de uma mesinha onde os soldados aparentemente estavam jogando baralho. As chaves estavam penduradas a uma altura que Flecha não alcançava, então Escudo caminhou até ela e pegou, fazendo um pequeno afago na cabeça de Flecha.

    - Tenho que abrir todas? - perguntou Escudo.

    - Acho que sim, só pra garantir, vai que tem mais de um, mas vamos primeiro nessa - Elmo respondeu, se encaminhando para a segunda porta à esquerda, notando que a janelinha de todas estavam trancadas.

Escudo testou algumas chaves até achar a certa, em seguida empurrou a porta e a abriu, recebendo um virote de besta na barriga e caindo para trás logo em seguida.

    - Não!! - Elmo tornou seus braços em estado gasoso e avançou para o homem que estava dentro da cela segurando a besta, mas rapidamente foi repelido pelos entalhes de argélio que tinham na armadura do indivíduo, caindo para trás. O homem puxou uma espada para atacá-lo, mas foi surpreendido pelo grito de uma criança.

    - Para!!! - Flecha gritou da porta, direcionando o olhar do homem para si, fazendo com que este caísse desacordado no mesmo instante.

Elmo ainda estava no chão e Escudo gritava em agonia, enquanto Adaga se abaixou e começou a usar as duas mãos para tentar conter o sangramento do jovem kruig.

Como que por uma ilusão de ótica, uma vanar apareceu do nada dentro da sala, facilmente reconhecível como uma devido à coloração forte tanto da sua íris quanto da sua esclera, característica da raça que fazia seus olhos lembrarem o de um gato.

    - Desculpa gente, eu verifiquei todo o perímetro, mas não tinha como olhar dentro da sala, não sabia que tinha alguém aí - em seguida ela se virou para o homem no chão e puxou sua adaga - Vou acabar com esse inútil…

    - Para.

Ouviu-se uma voz fraca dizendo. Só então que o grupo parou para observar com calma, dentro da sala havia uma cadeira, uma mesa com uma maleta de madeira contendo instrumentos de tortura e mais ao fundo da cela havia alguém. Parecia um humano, os cabelos eram longos, loiros, sujos e lhe cobriam o rosto, suas roupas estavam imundas e esfarrapadas. Ele estava sentado em um chão manchado de sangue seco e seus dois braços estavam presos por correntes, de forma que os braços permaneciam abertos acima da cabeça.

    - Pare - repetiu.

Lança parou no meio do caminho enquanto segurava a adaga.

    - Esse bastardo atirou no nosso amigo, a ponta é de argélio, por que você está defendendo esse lixo? 

    - Não estou defendendo - respondeu calmamente o homem preso - Só preciso coletar algumas amostras.

    - E o que isso significa? - Perguntou Elmo enquanto se levantava e tentava testar seus poderes, que ainda falhavam devido ao contato recente com argélio.

    - Me libertem, deixem ele comigo e eu ajudo o amigo de vocês.

    - Gente, o Escudo tá perdendo muito sangue! - Adaga gritou de fora da sala - precisamos dar o fora daqui.

    - Pode ajudar ele? - perguntou Lança, se virando para o homem acorrentado.

Luke balançou a cabeça para o lado, tirando os cabelos da frente dos olhos e revelando seus olhos verdes. Na sua visão estava uma vanar alta e esguia, com cabelos pretos e lisos segurando uma adaga. Seus olhos possuíam uma íris azul e a esclera era amarela. Apoiando-se nos joelhos estava um humano, ainda jovem mas já adulto, seus cabelos eram pretos e curtos, sua barba era rara e falhada e seus dedos estavam mudando a textura levemente e voltando ao normal. Na porta da cela havia uma criança de mais ou menos treze anos, de pele morena, com cabelos cacheados e castanhos que batiam um pouco acima dos ombros. As orelhas grandes e pontudas da criança eram características de sua raça, denunciando que se tratava de uma veneus. Fora da cela havia um kruig de pele azul claro deitado no chão com um virote cravado em sua barriga enquanto um humano adolescente de pele escura e cabelo de tranças amarrado em coque tentava estancar o sangramento com ambas as mãos. Claro, ainda na cela, havia um humano deitado no chão. Usava armadura e estava sem o elmo, revelando uma cabeça raspada e um rosto com cavanhaque, feições que Luke aprendera a odiar centímetro por centímetro durante os últimos cinco anos.

    - A cada segundo que passa, as chances dele reduzem - Luke falou olhando pro kruig ferido - As correntes são de ferro, não é argélio, vocês conseguem romper. Na salinha ao lado da mesa tem um pequeno armário de primeiros socorros, vou precisar das bandagens que estão lá.

    - Eu pego - Lança falou enquanto fechava os olhos e logo em seguida desaparecia da visão de todos. Lá do lado de fora ela disse - Adaga, vai lá romper as correntes dele, eu cuido do Escudo.

    - O humano adolescente rapidamente se levantou e correu para dentro da sala, segurando os grilhões que prendiam Luke e emitindo algumas vibrações até que os grilhões soltassem em um estalo seco.

Luke tentou se levantar rapidamente, mas percebeu que seu corpo não respondia da mesma forma que gostaria. Já fazia um tempo que não se movia de forma livre então levaria um tempo até que seus músculos se acostumassem novamente. Andou para fora da sala, mas antes deu uma olhada para o homem desacordado, depois olhou para o Elmo e disse:

    - Não deixa ele sair daí.

Ao chegar do lado de fora, Luke pegou as bandagens da mão de Lança, removeu a própria camisa esfarrapada e começou a enrolar a bandagem no próprio abdômen.

    - Mas o que exatamente você está fazendo? - Lança perguntou, confusa, ainda tentando conter o sangramento do Escudo, que agora estava prestes a perder a consciência.

    - Somos selenitas, não somos? Achei que já estava acostumada a coisas estranhas. Olha, você vai precisar remover esse virote daí, senão não funciona.

    - É o quê? - Elmo de dentro da sala enquanto mantinha os olhos no sargento desmaiado - Ele já está sangrando absurdamente, se tirarmos o virote ele vai morrer de vez, temos que ser cuidadosos.

    - Você tem certeza do que está fazendo? - Lança perguntou, ignorando os protestos de Elmo.

    - Sim, quebre a ponta de argélio antes, senão o dano será maior ao puxar - Luke terminou de amarrar a bandagem com firmeza.

- Tudo bem então - Lança rapidamente cuidou de deixar o kruig de lado, em uma posição que desse para ver a ponta do virote que lhe atravessava, tomando cuidado para não tocar no argélio e quebrando na haste de madeira. - Vou puxar! 1, 2, 3 e…

Lança puxou de uma vez o virote, fazendo com que o sangue jorrasse com força da barriga do kruig, que exprimiu apenas um grunhido.

Luke rapidamente se abaixou e tocou na pele do jovem ferido, dando uma rápida olhada para trás e falando em voz baixa:

    - Esse é o meu poder, imbecil.

Ao dizer as palavras, rapidamente as feridas do kruig se fecharam e este acordou do seu estado de torpor com um susto e uma respiração funda. Por outro lado, Luke caiu ao chão enquanto as bandagens na sua barriga se encharcavam de sangue.

    - Mas que infernos foi isso? - Elmo gritou, perplexo.

    - Mas que inferno foi isso mesmo? - Perguntou o recém recuperado Escudo, enquanto passava a mão no próprio abdômen intacto e intercalava seu olhar assustado entre Luke e Lança.

    - Eu estou curado, mas qual é o seu plano cara? Morrer no meu lugar? A gente mal se conhece, pra quê fez isso? Não dá pra sobreviver a esse ferimento.

    - Eu sobrevivi a coisas piores… não se preocupe, só cumpra a sua parte do acordo - Luke respondeu, enquanto tentava se colocar sentado ao chão - Já consigo sentir a dor diminuir, a ferida vai se fechar em breve, mas deve demorar umas horas até eu estar bem.

    - Não temos umas horas, precisamos sair daqui rápido e o soldado ali não vai dormir pra sempre - Lança falou apontando para dentro da cela.

    - Cara, seu poder é sinistro - Escudo disse, ainda perplexo com a sua própria integridade.

    - Me leve com vocês, levem ele também - Luke disse olhando para Lança, ignorando o comentário de Escudo - E ele não é um soldado, é um capitão. Sei quem vocês são, vocês precisam de informações e eu posso arrancar algumas dele.

    - Como sabe quem somos? - Dessa vez a pergunta partiu de Adaga, que se mantinha quieto ao lado de Flecha.

    - Estou aqui a muito tempo, muito mesmo - Luke falou com uma certa frieza - Não fazia muita coisa além de ser torturado e de ouvir, então aprendi algumas coisas. Vocês são os krochs não são? Eles odiavam vocês, já falaram bastante, só não entendo esse nome.

    - Significa "baratas" em ma'la, é assim que eles nos chamam, então assumimos o apelido - Lança falou para Luke.

    - Você vai me levar - Luke disse olhando para Escudo - Não consigo andar por conta do ferimento e como esse ferimento é seu então acho uma troca justa.

    - Sim, claro - Escudo respondeu prontamente.

    - E você vai levar ele - Luke se dirigiu a Elmo, apontando para o capitão desmaiado.

    - Isso vai ser trabalhoso, mas conseguimos fazer, só não fique por aí dando ordens aos meus membros, sou eu quem lidero eles - Lança disse enciumada - Eu vi umas cordas ali na maleta, amarre pernas e braços, podem amordaçá-lo com qualquer trapo sujo que acharem por aí.

    - E por que eu tenho que carregar? Esse cara é enorme - Elmo perguntou.

    - Ora, depois do Escudo, você é o maior aqui, vai aguentar - Lança disse, rindo um pouco da pergunta do humano - Qualquer coisa peça ajuda ao Adaga, eu estarei indo na frente, depois retorno para vigiar o caminho.

Lança fechou os olhos novamente e ficou lá parada.

    - Tá bem, ela vai demorar um pouco até chegar no esconderijo. Vou amarrar esse saco de bosta aqui pra poder levar - Elmo falou, impaciente.

Depois de alguns minutos, Lança desapareceu no ar como se nunca tivesse estado ali.

...

    A viagem foi um pouco longa, o forte ficava próximo da grande cidade, mas não dentro. Então, os krochs pegaram uma rota por dentro da mata fechada até chegarem no seu esconderijo temporário. O local ficava no meio da floresta e fora construída utilizando arquitetura vanar, já que se tratava de uma residência com sala, quartos e cozinha, tudo dentro do caule de uma grande árvore, de forma que as paredes foram esculpidas com o material da própria árvore e a entrada era do tamanho de uma porta comum, fechada por galhos e folhas. Antes de chegarem ao local Luke já era capaz de andar, o que permitiu que Escudo intercalasse entre Adaga e Elmo ao carregarem o capitão, que acordou algumas vezes mas foi colocado para dormir novamente pelo olhar de Flecha. Aproveitou o caminho para se apresentar brevemente e conhecer aqueles que lhe resgataram, descobrindo que eles haviam chegado até lá seguindo a informação de que havia um selenita preso no local. 

A pequena veneus era tímida e evitava fazer contato visual, a não ser quando estava usando seu poder. Luke puxou algum assunto e ela lhe contou que o esconderijo em que estavam foi encontrado por ela, que precisou fugir de homens maus e se escondeu ali, eventualmente se unido ao grupo e levando-os até lá.

Quando chegaram ao local, Lança já os estava esperando. Luke foi breve, organizou as coisas como queria e pediu privacidade, insistindo principalmente para que levassem Flecha para longe. Como não possuíam camas, Luke levou o capitão até um dos quartos e o deitou sobre uma mesa de madeira, amarrado e sem roupa, sob a luz de algumas lamparinas. Lança não pareceu se incomodar com o que Luke queria fazer e pediu apenas para que descobrisse onde haveriam outros selenitas cativos.

Luke não esperou mais, o capitão dormia tranquilamente sobre a mesa quando foi acordado por uma jarra de água fria no rosto.

    - Mas que… o que isso significa!? - gritou o capitão enquanto se debatia sobre a mesa, cuspindo a água que havia entrado em sua boca.

    - Essa quem me ensinou foi você. Nunca achei divertido acordar dessa maneira, mas você parecia gostar. O que mudou agora, capitão? - Zombou Luke enquanto aguardava o capitão Virílio perceber a situação onde estava.

O homem nu olhou para todos os cantos do quarto, tentando definir onde estava e se havia mais alguém ali.

    - Então você ainda sabe falar é? Parece que as outras baratinhas vieram te buscar, não foi? Logo você vai estar na minha mão de novo, acha que eles não vão vir atrás de um capitão? E onde estão minhas roupas seu delinquente?

Luke esperou um pouco, aguardando o capitão parar de falar e de se debater, só para mostrar que não estava com pressa.

    - Não se preocupe capitão, estamos bem longe, nenhum dos seus amiguinhos vai nos incomodar. Respira, quer mais um pouco de água? - Zombou Luke.

    - O que é que você quer? Seu merdinha! 

    - O que eu quero? Ora, quero coletar algumas amostras - Aquelas palavras deixavam um sabor doce na boca de Luke que havia esperado anos por aquele momento - Olha aqui, fiz questão de trazer sua maleta.

Luke abriu a maleta de madeira que estava em cima de uma cadeira e o capitão começou a se debater, já imaginando o que estaria por vir.

    - Lembro da primeira parte do meu corpo que arrancou, você lembra? - Luke continuou, enquanto pegava um alicate de corte. - Você vai lembrar agora.

Luke colocou o dedo indicador da mão direita do capitão entre as lâminas do alicate.

    - Mas que droga você quer? Eu fiz o que fiz pois era o meu trabalho, eu tinha um objetivo em mente, já você está fazendo isso só pelo prazer, provando que eu estava certo esse tempo inteiro, seu animal! - vociferou o homem preso.

    - Não não, não não não - Luke disse calmamente - mas eu tenho um objetivo, você vai me dar respostas. Isso é um interrogatório, não percebeu? Isso aqui é só pra você entrar no clima mesmo - terminando de dizer Luke fechou as lâminas do alicate, decepando o dedo do homem de uma única vez.

    - Maldito! Maldito, maldito! - o capitão gritou - O que raios você quer saber?

    - Mas já entrou tão rápido no clima? - Luke continuava com seu tom zombeteiro - Capitão, você consegue ser melhor que uma criança de catorze anos. Era o que eu tinha na época, lembra?

    - Lembro, agora faz logo a pergunta que você quer fazer! - o capitão falava cerrando os dentes de dor.

    - Bem... você vai me dizer exatamente onde estão os outros selenitas capturados. Não minta para mim, eu sei que tem outros, já ouvi vocês falando.

    - Nem todos da sua raça são tão resistentes quanto você, a maioria morre logo, você foi o que sobr…

Luke cortou o dedo do meio dessa vez, fazendo o capitão urrar de dor.

    - É mais fácil do que parecia. Sabe capitão, algumas partes simplesmente doem mais do que outras. Sabia que eu já me peguei diversas vezes torcendo?

Luke deu uma breve pausa para o homem parar de gritar.

    - Isso, torcendo. Eu torcia pra você arrancar determinadas partes do meu corpo ao invés de outras. Consegue imaginar o que é isso? Bem, acho que agora consegue.

Luke largou o alicate e pegou uma tesoura, que se assemelhava um pouco a uma tesoura de jardinagem extremamente afiada.

    - Você cuida muito bem dessas lâminas, admito - comentou Luke - sabe, acho que a partir de agora você devia falar sério, afinal, nada seu vai crescer de novo.

Luke colocou a genitália do capitão entre as lâminas da tesoura.

    - Espera! Espera! - rapidamente ele gritou - Eu colaboro, tá bom? Eu colaboro!

    - Então fala, onde estão os outros? - Luke perguntou, sério.

    - Tem um no forte Hammers, outro tá no laboratório do Franz Goldstone. Já ouvi que os arcanos também tem um, mas aí são boatos, o resto morreu, eu juro - o capitão falava rapidamente, como se quisesse dar o máximo de informações úteis antes que Luke perdesse a paciência e fechasse a tesoura.

    - Onde ficam esses lugares?

    - O laboratório fica em Purimar, no centro. O forte todo mundo conhece, é lá em Gerunda. É só isso que eu sei, o outro que a gente tinha em Estunia morreu também, eu só fui transferido por sua causa.

    - Não só transferido, parece que aproveitou bem a promoção que recebeu às minhas custas, não é? - Luke perguntou, recebendo apenas silêncio em troca, o que também lhe dava prazer.

    - Outra coisa - Luke respirou fundo - para quê aquele seu maldito médico precisava de tantas amostras?

    - Ele é um pesquisador da nossa ordem, não somos apenas soldados. Alguns estão pesquisando novas armas, mas tem outro tipo de maluco que nem o Pruist que tá buscando o impossível. Agora larga isso, eu estou colaborando.

    - E o que seria esse impossível? - Luke falou, sem largar a tesoura.

    - Ele acha que vocês não precisam ser mortos, que dá pra curar - o capitão respondeu - ele tá tentando achar essa droga de cura. Isso ia apaziguar as coisas entre o rei e o templo.

    - E nós por acaso temos alguma doença para precisarmos de cura? - Luke perguntou, deixando seu ódio vir à tona.

    - Não foi o que eu falei, você me perguntou e eu respondi, só isso, se for me matar, me mata de uma vez.

    - Não, capitão. Ainda temos muito a conversar, estamos só começando - Luke disse enquanto fechava as lâminas da tesoura, cortando fora o membro do homem amarrado.

    O interrogatório durou algumas horas. Lança tinha pedido para os demais irem buscar lenha e manterem a Flecha distraída, então só ela estava perto para ouvir os gritos. Ao final, Luke saiu da sala com alguns respingos de sangue na roupa e enxugando as mãos com um pano que já tinha sido branco.

    - Você devia trocar essa roupa, vou ver se o Elmo tem alguma coisa sobrando. Você conseguiu as respostas? - Lança tentou manter a indiferença.

    - Sim, tenho a localização de dois selenitas.

    - Bem, isso te ajudou em algo mais? Digo, você devia querer muito se vingar.

    - Ajudou… ajudou bastante. Mas ainda tenho muito a fazer.

    - Isso quer dizer que vai se unir ao grupo? - perguntou Lança com uma certa expectativa.

    - Vocês sempre matam soldados da Estrela de Sangue? - Luke perguntou, jogando o pano sujo de sangue para o lado.

    - Quase sempre que dá.

    - Então sim, estou com vocês - Luke respondeu prontamente.

    - Olha, aqui nós temos a tradição de adotar um codinome, como você já deve ter percebido. Você não precisa ter um se não quiser - Lança tinha um certo receio de parecer infantil demais e queria que seu grupo fosse levado à sério, apesar de ser composto por adolescentes e uma criança.

    - Tudo bem, eu já não sou mais o Luke de qualquer forma, aquele Luke morreu. O que eu sou agora nasceu no primeiro dia em que pus os olhos em um maldito soldado da Estrela de Sangue, o capitão Virílio fez questão de alimentar durante cinco anos até que amadurecesse. Isso me lembra de uma história que aprendi no templo… Eu era a carne, agora não sou mais - Luke olhou para o vazio, lembrando das suas aulas matinais de uma época que nunca voltará - Agora eu sou o próprio Sabre.

    As coisas realmente haviam mudado de ritmo. Sabre havia tido a oportunidade de torturar muitos indivíduos nos últimos meses, sempre conseguindo as melhores informações para o grupo. Dessa vez, no entanto, era um pouco mais pessoal. O único do grupo que aceitou ajudar foi o Escudo, isso pois sentia que estava devendo sua vida ao Sabre, mesmo assim a ajuda veio a muito contragosto.

    - Cara, não sei se ainda vão te aceitar no grupo depois dessa - Escudo falou - Vou vigiar lá fora, não quero ouvir isso. Depois a gente tá quite.

Sabre entrou na salinha de um dos esconderijos improvisados, ligou a lamparina e abriu sua maleta de ferramentas. O garoto amarrado na cadeira chorava baixinho, estava com os olhos vendados e uma mordaça na boca. Sabre retirou ambos e deixou que os olhos da criança se acostumassem à iluminação do local.

    - Então você conseguiu ser adotado? - Sabre perguntou - Como foi? Te trataram bem?

    - O que você quer? - Perguntou o garoto de cabelos encaracolados, choramingando.

    - Levante os olhos, você vai me reconhecer, Pedro.

O garoto rapidamente levantou os olhos para ver seu conhecido.

    - Luke? - Ele parecia ainda mais espantado agora.

    - Luke morreu, você matou, não se lembra?

    - Me desculpa, me desculpa - O garoto começou a chorar mais alto.

    - E ainda por cima continua um chorão - Zombou Sabre - Eu tinha a sua idade quando fui levado, graças a você.

    - Me perdoa, eu nunca quis fazer isso.

    - Então porque fez!? - Luke gritou.

    - Eles prometeram! Eles prometeram que iam deixar o templo em paz, que nunca mais tocariam na mãe Lucélia - Pedro respondeu em lágrimas.

    - E o que isso resultou?

    - Em nada. Depois que capturaram você, eles só intensificaram as inspeções, até chegaram a achar outro.

    - Então você matou mais de um.

    - Sim… me perdoa, eu sei que não mereço, mas se eu pudesse teria desfeito tudo - Pedro novamente abaixou a cabeça, fungando - Pode me matar se quiser.

    - Não vou te matar - Sabre falou friamente, pegando um bisturi de dentro da maleta.

Em seguida, foi para trás de Pedro, onde as mãos dele estavam amarradas e fez um corte fundo em sua mão, exatamente onde havia uma cicatriz. O garoto segurou o grito e só grunhiu um pouco.

Sabre foi novamente para frente dele, abriu a palma de sua mão de forma que Pedro pudesse ver e tocou na testa dele, rapidamente fazendo com que o corte surgisse em sua própria mão.

Pedro ficou sem entender aquilo, mas já não sentia dor. Sabre foi novamente atrás dele com o bisturi, só que dessa vez cortou as cordas, voltando para perto da maleta e guardando o bisturi, com olhar sério.

    - O que foi isso? - Pedro perguntou, agora olhando para a mão que deveria ter uma ferida.

    - Era o que eu queria ter feito… naquele dia - Sabre falou, desviando o olhar - Agora vai, dá o fora daqui. Segue a estrada que vai encontrar um posto de vigia, lá os soldados te guiarão até sua casa.

    - Então foi pra isso que me trouxe aqui?

    - Não - Sabre respondeu com frieza - Eu o trouxe aqui para torturá-lo, lentamente.

    - E por que está me deixando ir? - Pedro perguntou, arrependendo-se logo em seguida, temendo que o rapaz mudasse de ideia.

    - Não sei. Achei que eles tinham tirado tudo de mim, mas parece que não. Agora vai.

    - Então você me perdoa? - Pedro perguntou quando já estava próximo da porta.

    - Não abuse da sorte.

Talvez pela forma que Luke falou, talvez pelo alívio que sentiu no peito, de alguma forma misteriosa, Pedro sabia que aquilo era um sim. Apesar dos contratempos, aquela foi a melhor noite que teve em anos, pois conseguiu dormir sabendo que Luke estava vivo.

Grande foi a surpresa de Escudo ao perceber que quem saiu do local não foi o Sabre, e sim a criança que ele havia ajudado a sequestrar sob protestos.

    - Moço, cuida dele, por favor - Pedro disse ao passar por Escudo.

Escudo rapidamente entrou na sala com medo de ter acontecido algo a seu companheiro, encontrando algo que esperava ainda menos. Ao lado da maleta fechada, Sabre estava ajoelhado, chorando amargamente.

Nada daquilo nunca foi contado aos outros companheiros.

Naquele dia, Escudo deixou de seguir o Sabre por dívida. A partir de então, o seguiria por respeito.

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5 Comentários

  1. Nossa, quem diria que depois de tanta carnificina a história teria um final assim. E acho que ler ouvindo músicas do Rule of Rose (emotional, segundo inclusive o nome do vídeo) deve ter dado mesmo um clima a mais. Rule of Rose é aquele jogo que amo mas nunca zerei, sofri sempre com a jogabilidade, mas é uma história... que te acerta bem lá no fundo, um retrato da crueldade humana lembrando que até crianças podem ser cruéis, e porquê o vermelho, a cor favorita da protagonista, a cor do amor e além é também a mais odiada por ela. Vermelho vivo, lindo... Mas lembra sangue e sangue lembra dor e sofrimento...

    Bom, já canta a música "When a Mermaid Comes of Age", o caminho do amor é pavimentado por corações partidos... E com toda esta analogia eu só queria dizer que o amor realmente é sofredor, a vida afinal é cheia de sofrimento e até amar dói. Mas o amor em si é também vida, e quando é sincero ele nunca morre, nunca te deixa. Se você se queixa que não o acha então olhe dentro de você, é lá dentro que Deus te fala e pode te dar este amor, um amor que realmente não morre...

    Enfim, o cap realmente foi bem melhor que o anterior! Mais emoção, mais profundidade e mais drama, o quê faz todo sentido porquê afinal é uma história dramática, com mais foco no desenrolar de um flashback doloroso e não em lutas ou simplesmente ambição amarga e fria. Lembra ep de Naruto, onde você chega até a chorar, ou quase, com tudo que eles sofrem. Naruto não é coisa pra "adulto" digamos assim, mas facilmente arranca lágrimas de um. Somos todos humanos afinal...

    Parabéns de novo, Ed! Realmente gostei muito mesmo, apesar de ser uma leitura dolorosa é simplesmente maravilhosa. E no lugar do Pedro acho que eu provavelmente teria ficado com o Sabre lá, com direito a abraços e muita lágrima rolando, rsrs, e talvez me oferecesse pra ficar do lado dele sempre e sempre. Sabre afinal vai precisar de toda a ajuda que puder pra não perder aquilo que conserva no cerne da sua alma.

    E sim, o comentário ficou longo mas... Rsrs só queria me expressar em relação ao cap e compartilhar também umas ideias. Parabéns e obrigado aos dois, Ed e Shady pela experiência! E sim, como canta a música da sereia do anime de 1975 (o final dele vai partir o coração de muitos):

    "Seu coração se torna seu novo guia, será portal para o caminho do amor eterno!"

    E o amor eterno existe! Mas neste mundo onde tudo perece, não é aqui que você o encontra. Coisa que logo todos iríamos descobrir ao fim da história da princesa Marina.

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    1. Primeiramente, muito obrigado pela leitura Sr Marcio.
      Nossa, tava lendo sobre esse jogo bem recentemente, me senti triste pois não o conheci na época, hoje talvez eu fosse sofrer um pouco justamente por conta da jogabilidade que parece um pouco ultrapassada (me corrija se eu estiver errado). Senti isso jogando fallout new Vegas por exemplo, é um ótimo jogo, mas que não conheci na época e não pude apreciar no seu auge.
      Você ter adicionado um trilha sonora à leitura certamente agregou ainda mais, fico feliz que tenha elevado sua experiência dessa maneira, você com certeza escolheu muito bem a trilha.
      O amor é realmente complicado, já cheguei a acreditar em uma certa fase da minha vida que ele não existia, isso pois acreditava que o amor que sempre devia ser algo puramente bom e incapaz de machucar. Aí, certamente me enganei, ele machuca, mas não deixa de ser bom, obrigado por compartilhar suas ideias sobre algo tão profundo.
      Adoro comentários longos, o seu me deixou reflexivo, irei buscar ouvir essas músicas.
      Esse é meu capítulo favorito, já escrevi mais um e estou no quarto, mas continuo tendo um carinho especial por esse, isso pois Luke foi um personagem que criei a muitos anos e tenho muito apego, fiquei imensamente feliz de escrever sobre e de saber que alguém o conheceu de certa maneira.
      Até a próxima Sr Marcio, muito obrigado mesmo. E vamos tirar o Shady do vício, livre-se Shady, você é mais forte que isso!!!

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    2. Comassim falaram de Rule of Rose e nem citaram meu artigo? Não esqueçam que falei tudim sobre o jogo na análisemorte respectiva!!!! Humph

      Enfim, o Mundo de Zara é uma das melhores histórias que já acompanhei. O jeito como o sr Ed escreve é único, e prende muito a atenção. Tu tem um timing ideal cara, eu apenas amo isso.

      E calma galera, eu vou parar de capturar monstrinhos. Logo o artigo sai... só faltam 3 torres.... eu acho.

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  2. Sim, realmente este cap está simplesmente incrível! Já aguardo com ânsia o que mais vem por aí e tenho certeza que será incrível!

    Sobre Rule of Rose bom, a jogabilidade realmente é problemática. Jennifer é um pouco lenta e tem muito medo de ferir os outros, então quando é na hora do combate... Além de um tanto imprecisa. Mas paciência, a jornada realmente vale à pena, e o fim será de uma imensa tristeza...

    Recomendo você ver até a letra da música principal do game "A Love Suicide" que descreve bem o cerne do game e trata das dificuldades das pessoas de amarem, ou quando dizem que amam, e no fim nos lembra que o amor não é sobre si mesmo, mas sobre uns aos outros! Somos criaturas difíceis também de lidar e serão muitas as vezes que teremos que sofrer e o amor é sofredor, será necessário que soframos também para não nos esquecermos da importância que as pessoas, inclusive as que amamos, têm em nossas vidas. Quem ama cuida, e cuidar também requer disciplina.

    E por fim, vamos lá pra mais um cap, que assim espero, será postado em breve! Senhor Shady trate de aparecer quando puder também!

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    1. O novo capítulo de Zara está no ar sr Marcio!!! E confesso que é meu favorito até agora.

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