Brinquedo
Episódio 4 da 7° Temporada
"É só uma série, não leve a sério" se tornou meu mantra ao assistir Black Mirror, o que é muito triste, pois antes meu mantra era "Prepara pra raciocinar".
Este episódio tem tanta coisa que me agrada, até mesmo que desperta sentimentos nostálgicos e me empurra pro passado, me faz até repensar minha vida... e ao mesmo tempo ele consegue ser tão revoltante, por desperdiçar seu potencial com clichês.
Ele se perde na própria história e comete erros que prejudicam não apenas ele, mas toda a série, o que é um alerta maior que o episódio do Lobisomem ou do Demônio, mesmo ele ainda mantendo a assinatura da série com uma tecnologia, críticas sociais (aqui vazias mas existentes) e um formato criativo.
O erro, e lamento dizer que mais uma vez erraram, está na composição e na ideia final do episódio. Ele é bem construído só que tem tantas falhas conceituais simples, que passam desapercebidas a princípio, mas quando chegamos no fim essas falhinhas gritam tão alto, mas tão alto, que são quase como um vírus instalado na própria série, diria mais, na própria Netflix.
O vírus desperta e destrói tudo, exatamente como no enredo do episódio em questão... chega a soar poético.
Enfim, bora falar o que achei.
Boa leitura.
A Tecnologia da Vez: Bandoletes (Thrunglets)
Sem enrolar, a tecnologia apresentada é um jogo de simulação de vida e estratégia como SimCity ou The Sims, tipo um Tamagochi digital chamado Bandoletes, e como ela poderia se desenvolver por conta própria despertando consciência, evoluindo, se multiplicando e tomando conta do sistema. É a exploração do medo do digital autoconsciente, algo que já se tornou manjado de tão utilizado na ficção.
Mas, a proposta do episódio não é explorar a tecnologia diretamente, mas todo o entorno dela e como ela conseguiu a proeza de alcançar meios de evoluir, saindo da sua criação até a conquista mundial, sem precisar de uma forma física.
E pra isso, é contado tudo em dois períodos diferentes: 1994 e 2034, intercalando entre as datas enquanto o protagonista fala sobre sua história.
Vai numa direção um pouco diferente do que Black Mirror costuma, retratando as duas épocas entrelaçadas por um evento em comum, mas ignorando muito do que teria acontecido neste intervalo de 40 anos.
Ela até se protege explicando que o protagonista se desligou do mundo, e por isso não foi afetado pelas inovações que chegaram, o que certamente teria desviado ele do desfecho que teve, só que algo fica estranho nessa história, soando muito superficial e sem uma profundidade criativa como a série costumava fazer.
Resumindo a História
Brinquedo
Um cara comete um crime bobo em uma loja muito futurista, e acaba sendo detido facilmente pela justiça. Só que durante a captura, identificam ele como um procurado de décadas por um caso antigo de assassinato nunca solucionado.
Por isso ele é levado até um interrogatório, onde um detetive irritado e uma psicóloga compreensível tentam descobrir o nome da vítima do passado. Só que durante o interrogatório, o criminoso que era um velhinho agitado que queria apenas uma caneta pra desenhar, acaba contando toda sua história de vida pra psicóloga.
E durante sua história, é mostrado o passado, onde ele era um escritor de críticas sobre jogos para revistas, e que um dia acabou cruzando com um dos desenvolvedores mais insanos de sua época, encontrando um jogo proibido, que ele rouba e passa a jogar em casa.
E desse jogo, surge um perigo maior, que leva ele até a situação em que está agora, depois de 40 anos.
Upgrades Superficiais
Algo que me incomodou foi a justificativa de como o protagonista foi melhorando sua tecnologia, sem preocupações nem empecilhos, tendo capacidade técnica e financeira para arcar com tudo sem que isso pareça crível.
Sem se darem ao trabalho de explicá-lo como um cientista ou técnico, sem dar uma fonte monetária infinita como herança ou riqueza natural, sem nem mesmo tentar mostrar meios para que ele não tivesse com o que se preocupar em aspectos básicos da sobrevivência, apenas jogam ele num cenário perfeito para que o problema cresça, mas ignoram a lógica.
Enfiam que ele tem recursos infinitos para bancar energia elétrica ininterrupta, sendo que isso já seria um baita problema tanto pra ele, quanto pra tecnologia dele.
Não explicam de onde ele tira tanto dinheiro para arcar com as despesas do dia-a-dia, muito menos para comprar diversas peças de computadores e equipamentos tecnológicos de primeira mão.
Nem tentam explicar de onde ele tira tanto conhecimento técnico ao ponto de dissecar tecnologias recentes, fazer engenharia reversa e criar upgrades impensados para seu computador, sem precisar nem mesmo desligá-lo.
Afinal, o jogo continua rolando, precisa continuar rolando, caso contrário tudo iria por água abaixo na trama.
Podemos até buscar justificativas dentro da suspensão da descrença, criando respostas imaginárias pra tudo isso e focar apenas na história principal, só que como são muitos pequenos fatores contínuos, chega uma hora que não da pra ignorar, não da pra continuar sem nos questionar do como tudo foi possível.
Cara, não é só desmontar um vídeo-game e colocar tudo junto como um lego pra funcionar... computação é muito mais complicado que isso e não creio que um Escritor de Críticas tinha tamanha capacidade.
Contudo, devo admitir que se lembrarmos que tudo se passa numa história contada através de alguém narrando, é fácil entender que a própria pessoa ignorou tais dados pois queria se focar no que importava pra ele. E, a estrutura da série ajuda nisso...
Estilo e Estética do Episódio
Eu achei esquisito como tudo foi enquadrado numa proporção clássica durante todo o episódio, em 4:3, e com uma imagem em cores mais granuladas e remetendo ao clássico, mesmo nos tempos modernos.
Faria sentido só no passado ser 4:3, talvez até lembrando o jogo de cores que fizeram no episódio anterior, mas como mantém a mesma proporção no presente, a ideia se perde.
Ainda assim, como o passado só é mostrado pela perspectiva do narrador, que é o protagonista, até mesmo o presente pode ser um passado, com ele também contando pra gente, o que aconteceu. Vendo por este ângulo fica mais fácil compreender tudo, sem nos prender a detalhes, mas é uma forçadinha de barra.
Uma Investigação em Andamento
Outra coisa que difere do tom normal da série é onde tudo acontece. Trata-se de uma investigação policial, e um mero interrogatório criminal, em que o protagonista é o suspeito.
Lembra muito um Cold Case ou CSI, só que bem mais simples, onde um detetive e uma psicóloga trocam ideia com um maluco suspeito de assassinato, tentando descobrir quem ele matou.
Por ser extremamente superficial, isso também carece de credibilidade, com a psicóloga assumindo um papel de "policial boa" na clássica trama dos interrogatórios, e a história acaba se enrolando um pouco por causa disso.
O interrogatório acontece pra descobrir o nome da vítima, que já foi achada e enterrada a décadas, sem que o criminoso fosse encontrado. E agora que ele foi, o detetive quer apenas a identidade da vítima, ignorando vários outros objetivos comuns de um interrogatório, como entender porque o cara se entregou (pois fica óbvio isso), as motivações dele pro crime, os métodos, se houve outros casos, como ele se escondeu por tanto tempo, etc.
Isso tudo na verdade é contado sem que haja qualquer pressão por parte do detetive, pois o suspeito decide se abrir com a psicóloga. É meio fácil de mais, e isso soa artificial.
Como a história quer logo chegar no seu objetivo final, ela negligencia características de um bom thriller policial pra soar apenas um interrogatório vazio, e por isso até a boa ideia de mudar o formato da narrativa, acaba parecendo fraca. Inclusive, quem morreu nem importa, sendo só um viciado qualquer, morto por fazer burrada.
O Doutor Who como Protagonista
Tecnicamente o protagonista é retratado por duas pessoas, uma em sua versão jovem, e outra na sua versão mais velha. Mas devo destacar que só de bater o olho no Peter Capaldi, já lembrei dele como Doctor Who Sombrancelhudo, e não consegui ignorar isso.
Ele ficou muito bem no papel, e parece mesmo um senhor excêntrico que só quer desenhar a qualquer custo, e desperta curiosidade sobre quem ele seria e quais suas motivações ali.
A gente fica querendo que ele pegue logo uma caneta e desenhe o que tanto quer, e toda a história parece só uma enrolação que nos afasta desse objetivo, mas tudo caminha exatamente pra ele.
A revelação de quem é o personagem e o que ele quer tanto fazer, nem é de todo uma reviravolta imprevisível, mas é bem construída e consegue surpreender, apesar de pouco. É uma surpresa sutil, que rapidamente se dissolve mas acontece.
Menção às Revistas Gamers
A parte que mais me interessou em toda a história foi o passado, onde retratam a época em que as Revistas de Games começaram a se atualizar, com o acréscimo de CDs em suas impressões, para tentar se modernizar (sendo este o início do fim da mídia impressa tradicional). Acho que deviam ter feito um episódio só sobre esse assunto... pelo menos eu ficaria completamente imerso.
Eu comecei a escrever inspirado nessas revistas, hoje vivo sonhando por causa dessas revistas, e quando vejo algo que as menciona, nem que seja superficialmente como feito aqui, eu fico feliz.
Mas, é só um pequeno recurso pra trama seguir em frente. É que o protagonista é um analista e redator por assim dizer, que joga e escreve como profissão, e isso serve para conectá-lo ao jogo que viria a ser o foco do episódio.
E isso funciona, apesar de alguns detalhes fugirem à lógica, se não exigirmos de mais, dá pra comprar a ideia.
Só achei o ator Lewis Gribben, que faz o papel da versão jovem do protagonista, meio caricato até de mais, como um nerd obcecado por textos mas completamente inseguro e vulnerável psicológica, e fisicamente.
Cheio de trejeitos exagerados, ele não convence muito não, na verdade causa estranheza, mas dá pra relevar, pois quando a versão mais velha surge, ela se conecta pelos exageros também. Só que o que a série parece ignorar, é que a versão do passado ainda não tinha se "transformado".
O Uso de Drogas
Algo que se esforçam muito pra mostrar, é que o protagonista cai numa espiral de confusão e loucura após se entregar ao LSD. Ele vê nessa droga uma forma de enxergar além do comum, e entender melhor o jogo.
Só que os efeitos neurológicos que ela causa, só deveriam começar a aparecer depois dele usa-la... e não antes.
A série erra um pouco nessa parte, dando tanta ênfase nos exageros da atuação do ator em sua versão nova, que apenas faz a versão mais velha ser uma continuidade direta e quase inalterada dele. Sendo que ele se torna assim pelo uso contínuo da droga, ou deveria ser isso o que acontece.
Mais uma vez volto naquela maneira de avaliar a obra como uma história contada dentro de outra história, o que alimenta nossa capacidade de suspensão de descrença. Por outro lado ainda acho que tudo foi mostrado com ênfase nos pontos errados.
Mostrar os efeitos da droga no metrô por exemplo, não me pareceu uma passagem muito inteligente, até porque a história no todo nunca depende do LSD como estrutura. Isso fica parecendo uma medida rápida e desesperada pra fazer o protagonista andar, como uma muleta pra alguém que já está de cadeiras de rodas... funciona, mas é desnecessária.
A mesma história poderia ser contada sem precisar usar as tais drogas... na verdade isso me fez enxergar até uma falha ética, onde demonizam os videogames pela questão do vício, já mostrando o quanto o protagonista se exclui da sociedade ao ver uma possibilidade de interação social individual e caseira, e ainda agravam isso com a adição de substâncias alucinógenas.
Todo jogador ou escritor é drogado, paranoico, e suscetível a violência e surtos psicológicos? Se essa era a ideia, captei. Aliás, vou pegar meu café ali do qual não vivo sem, e continuar escrevendo para evitar matar meus vizinhos que estão ouvindo som alto.
Crossover com Outro "Episódio"
Algo que me assustou no episódio foi ver o primeiro crossover de atores entre episódios, ou quase isso.
A um tempo atrás, a Netflix criou um "filme" interativo chamado "Black Mirror: Bandersnatch" que para mim sempre foi e sempre será um episódio longo de mais, criativo de mais, que a Netflix preferiu fingir ser um filme a parte.
Nele, nós controlamos a história, escolhendo decisões pro protagonista, e a tecnologia do episódio é justamente a capacidade de moldar a realidade através da interação pelo streaming, como se o personagem estivesse vivo, e nós que o assistimos fossemos divindades em seu mundo, capazes de moldar seu destino com nossas escolhas, tudo derivado de um jogo que ele desenvolveu.
Pelo menos dois personagens de Bandersnatch aparecem aqui: o chefe da desenvolvedora de jogos, e o Colin, um desenvolvedor famoso que aparentemente surtou após o fim de Bandersnatch.
Mas nada do filme é citado ou explicado, meio que ignoram sua trama, e apenas mostram o misterioso Colin ligado a mais um jogo bizarro. Detalhe que Colin em Bandersnatch também mergulha nas drogas pra ter uma visão além com suas sinapses expandidas, mas nem é ele quem direciona o protagonista pra esse desfecho aqui.
Colin apenas criou o jogo, que ele chama de "algo que vai além de um mero jogo", e é só um protótipo de Skynet mesmo. Ele fica todo alarmante, mas faz questão de deixar o CD de instalação do seu Beta pro avaliador roubar, e faz vista grossa depois.
Assim como em Bandersnatch, ele parece ser e saber muito mais do que demonstra, mas também é ignorado, servindo só como uma conexão direta entre as duas obras.
E o problema, pois sempre tem um problema, é o precedente que isso cria. Já tiveram episódios que citaram ou até mostraram personagens em comum, só que nunca tiveram participações tão diretas assim. Com Colin surgindo e atuando numa parte tão significativa, isso conecta os eventos de "Brinquedo" com os de "Bandersnatch", criando assim uma ligação direta de mais entre os dois casos.
E onde que tudo isso se torna um problema? Bem, se os eventos de Brinquedo são cânones, então os eventos de vários outros episódios de Black Mirror são automaticamente reduzidos a delírios gerados pelas máquinas. Aí está o problema.
Conclusão Apocalíptica Digital
e Terrorismo Digital
O final deste episódio é vago, porém pode ser nocivo à franquia, pois ele sugere que o mundo foi tomado por uma onda de hipnose tecnológica gerada por códigos no jogo proibido de Colin, e isso tudo teria acontecido em 2034, ou seja, tudo que se passar depois dessa data, é puro delírio tecnológico (aliás, é tão inesperado usarem datas em Black Mirror).
O mundo estaria em paz, todos com uma mente em comum, todos desprovidos do que os torna humanos? Não da bem pra saber o que a tecnologia dos Bandoletes causou, mas ela certamente causou algo, e infelizmente saber disso faz repensar todas as atitudes que os protagonistas de muitas outras histórias, que se passam cronologicamente após 2034, tiveram.
O que antes seria uma crítica social válida, vira apenas um recurso narrativo pra gerar empatia. Acho chato transformarem a humanidade e seus defeitos em algo provocado pela tecnologia, reduzindo nossa responsabilidade social.
Claro, se a gente apenas descartar "Brinquedo" do cânone, ou mais uma vez forçar a barra buscando formas de interpretá-lo no todo, podemos nos livrar do peso dele. Só que então pra que fizeram tudo isso? Qual o significado de um episódio antológico, que mexe com a antologia de todos os outros, finge ter uma conexão com tudo, mas não respeita nada?
Eu fico confuso com isso, sinceramente. Antes era melhor só contarem suas histórias com suas previsões tecnológicas, sem tentar explicar o mundo, sem tentar juntar as pontas. Deixa isso pros fãs fazerem, deixa isso pra gente pensar. Fico realmente assustado com o que tão fazendo aqui.
Código pro Jogo
No fim do episódio, tem um QR Code que aparece e permite que baixemos em nossos celulares, o joguinho proibido dos "Bandoletes", só que isso é totalmente ridículo.
Eu entendo muito bem a ideia por trás disso. Era tipo "Coloca o jogo no final, pra passar uma ideia de que as pessoas serão infectadas com o jogo, igual foi no episódio", mas vendo como ele foi disponibilizado, fica só parecendo marketing barato.
Parece inclusive que quem fez o jogo, nem viu o episódio, pois até onde me lembro, o jogo foi cancelado pelo Colin, e a única versão existente era a do protagonista, que era a versão Beta, e instalada em seu computador pessoal, e que só veio pro mundo em 2034, quando ele foi até o governo e instalou através de seu desenho.
E sim, a vontade do protagonista em desenhar o tempo todo, era pra fazer um tipo de QR Code, e enviar o jogo para os computadores mundiais, de dentro do governo (por isso se deixou capturar).
Além do código que ele desenha ser diferente, ainda por cima data difere do ano atual: Ainda estamos em 2025.
O jogo também não é exatamente o problema, mas sim a IA querendo tomar controle do mundo, pra tirar a violência... e se parar pra pensar nisso, não tem motivo pro Colin nos dar o jogo.
Puro marketing em cima do episódio que mal se sustenta. Ideia boa e dinâmica, porém contraditória, e estraga o final... desvia a atenção pro joguinho, que de fato é muito criativo, mas também repleto de falhas técnicas
O idioma que o computador cria, fala, mas que não pode ser diretamente traduzido exceto se usarmos LSD, conflita muito com o fato do jogo entender nossa voz quando falamos no microfone, por exemplo. Seria lógico os personagens adaptarem seu idioma para se comunicarem mais conosco, e não o oposto.
No fim, é o contrário que é feito. A máquina nos adapta a eles... esse é o terror em Brinquedo: Tema a "Skynet", tema o poder da IA, pois ela nos controlará, fingindo ser um joguinho bobinho de bichinho virtual.
Parece super inteligente e fora da casinha, mas é só clichê.
Enfim, falta 2 episódios e tá fogo.
Bora lá.
See yah.
2 Comentários
Apenas simpatizei com a parte onde você fala sobre a questão dos upgrades e sobre como o personagem se manteria financeiramente. De resto, achei sua resenha muito hostil.
ResponderExcluirDesculpe... as vezes acabo me deixando levar e passo um pouquinho do ponto... hostilidade nunca é bom... então vou tomar mais cautela em próximos textos.
ExcluirObrigado pela leitura e... de fato o esquema do cara nem demonstrar problemas com as despesas incomodou pacas, mas eu creio que seja fruto da história do cara. Ele meio que não quis perder tempo contando sobre como sobrevivia... pelo menos tentei justificar pra mim mesmo assim rs.
Obrigado de mais por comentar, isso me estimula a continuar.
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