Diários de uma Apotecária
Eis um anime que me pegou de surpresa e não largou mais. Eu jamais pararia pra assistir, mesmo ele tendo uma arte linda logo de cara, o tema dele engana pela aparência.
Ao invés de ser uma comédia romântica cheia de drama e ecchi, ele é uma série investigativa semi-antológica de suspense, lotado de referências culturais e histórias, riquíssimo em fatos reais, temas sensíveis e brutais, tudo pincelado com carisma, humor e suspense.
Estamos falando de uma história pesadíssima, mas que soa leve pelo jeito que é contada.
Dia de Maomao, borá lá?
Boa leitura.
Nunca Julgue um Livro pela Capa
O anime é sobre uma garota que sai dos bordéis do Distrito do Prazer e vai pro meio das garotas de luxo do imperador em seu Palácio, isso tudo durante o período feudal do Japão. Falando assim a primeira coisa que se pensa é "vai rolar sacanagem da braba" mas é exatamente o oposto! Pensa num anime leve em aparência, mas extremamente pesado em temas.
Ele fala diretamente de mutilação, escravidão, sequestro, morte, abusos (de todo tipo tá), traumas psicológicos, distúrbios mentais, cara... cara... CARA! É uma mina fofinha que mexe com ervas, toma veneno, mas se mete em uns problemas num nível absurdo, e trata tudo com tanta calma, tanta serenidade, que isso transborda pro próprio anime! E o mais curioso: Sem apelar pro visual, sem precisar mostrar tudo.
De fato, é um diário, escrito por ela sobre temas sensíveis mas, elaborado não para reduzi-los ou enfeitá-los, e sim para tratá-los com o devido respeito e sensibilidade, explicando sem soar exagerado, sem soar sensacionalista e principalmente: SEM ROMANTIZAR.
Esse sendo um dos aspectos mais chamativos é aquilo que nos prende. Acompanhando a jovem Maomao, nos vemos em cenários estranhíssimos ainda mais para a cultura atual do cancelamento, em que tudo que hoje é inadmissível sequer cogitar comentar, é explicado minuciosamente e com muito respeito.
Tudo se passa em uma época onde o normal era outro, e a protagonista mesmo tendo consciência do quão grave tudo é, não questiona, não julga, apenas sobrevive em sua calmaria, registrando tudo para a posteridade.
Detetive Farmacêutica
Maomao é uma aspirante a investigadora em uma época em que isso nem existia. Por ter bastante conhecimento sobre ervas e ter crescido num meio em que valia tudo pra sobreviver, ela se desenvolveu o suficiente pra conseguir investigar qualquer coisa, independente da gravidade ou dificuldade.
Ela sabe muito, seu conhecimento parece ilimitado mas na verdade, ela é apenas muito experiente e inteligente, sabe analisar, sabe interpretar, e sente atração pelo desafio de decodificar enigmas.
Sua vontade em descobrir e aprender torna ela vulnerável aos interesses alheios, mas calma, nada disso transforma ela em um alvo ou uma vítima... ela sabe muito bem do poder que tem, e manipula o mundo para que não a afete negativamente.
Ela não sofre, apenas sobrevive mesmo, buscando as melhores formas de continuar sem ser abusada pelo sistema em que existe. Acostumada com o mundo ela achou seu jeito de continuar, enxerga os melhores ângulos e se aproveita pra nunca cair.
Temas Sensíveis
Filha de um apotecário eunuco, ela é sequestrada, levada à força pra trabalhar como escrava do imperador, não que ela já não vivesse no limite da dignidade trabalhando como entregadora de ervas no bordel mais famoso do distrito do prazer.
De um lugar onde mulheres eram tratadas como objetos sexuais, ela vai pra um onde as mulheres são tratadas como máquinas de trabalho ou garotas de programa de luxo do imperador, conhecidas como Concubinas.
Homens presentes no palácios são castrados, transformados todos em eunucos para servirem apenas de mão de obra como serviçais ou seguranças das muitas mulheres do Imperador, e assim a sociedade segue firme.
Pra se proteger num mundo assim, a garota faz de tudo pra passar despercebida, tenta parecer menos atraente, tenta não demonstrar sua inteligência, busca nem se destacar, mas não dá, uma hora ou outra ela acaba aparecendo mais do que devia.
Só que nada vem fácil, seus dotes são direcionados para situações cada vez mais preocupantes: De uma escrava, ela vira uma provadora de venenos, e encontra alegria nisso!
Sua satisfação está em unir útil e agradável, ela gosta de desafios, gosta de analisar drogas, ervas e substâncias ilícitas, então pra ela o copo nunca está meio vazio. Conforme as histórias avançam, Maomao sempre acha o lado bom da vida.
Semi-antologia
Estranho chamar a obra dessa forma pois ela é totalmente contínua, os personagens são basicamente os mesmos sempre, e a história segue um fluxo narrativo de ações e consequências. Só que, cada episódio é um conto isolado, sobre uma investigação de Maomao.
Mesmo que no geral cada temporada tenha seu tema principal, esse isolamento de pequenas investigações em cada episódio, com inicio e desfecho estabelecidos em seus 30 minutos, sem esticar pro próximo episódio, sem enrolar, sem soar corrido ou apressado também, isso estabelece um controle agradável.
Sabemos que o que começa vai terminar e não temos que esperar o próximo nem assistir o anterior pra entender. Isso quase estabelece um formato de seriado, já que dá pra pegar facilmente qualquer episódio isoladamente e assistir sem medo algum.
Certas reações a personagens de episódios anteriores podem aparecer repentinamente claro, mas isso apenas desperta curiosidade. O mais interessante são os pequenos contos investigativos que são sempre bem explorados e complexos, o suficiente pra nos manter entretidos.
Animação
Que arte impecável! "Diários de uma Apotecária" é belíssimo no que pinta, e ele lida com coisas que normalmente os animadores tendem ou a censurar, ou extrapolar pra tirar proveito.
Cada pedacinho parece ter sido feito com carinho extremo, preenchendo o espaço de tempo sem enrolar, e recompensando nossos olhos com a mais pura arte.
Até detalhes minúsculos como a dublagem da Maomao idosa lendo o próprio diário (é assim que penso sobre a voz velhinha que apresenta os contos) são coisas que destacam o quanto a obra se leva a sério, e trabalha com cautela o que quer apresentar.
Responsável, sem desrespeitar o público, sem desrespeitar o enredo, e principalmente, sem desrespeitar a época em que tudo se passa, e a época para onde tudo está sendo contado, os animadores conseguem transferir com maestria o conto original do mangá, assim como ele faz.
É um terreno perigoso, mas que ele passeia como se fosse um parquinho. Fiquei bobo quando me vi admirando uma história com tanta carga emocional, mesmo eu tendo fraqueza enorme pra isso (To Your Eternity e o eterno trauma que o digam).
A calmaria é o segredo, o jeito de tudo aparecer normalizado, sem questionamentos brutos, apenas fatos bem estruturados e apontados, isso conforta e anestesia, prepara pra receber a história mais complexa, com a maior tranquilidade.
Temas de Época
Palavras como apotecário, eunuco, concubina, são equivalentes a farmacêutico, castrado e garota de programa hoje em dia. Claro que não é nada disso, mas a termologia em si tem quase o mesmo significado.
Apotecários eram pessoas que trabalhavam com ervas de todos os tipos e se dedicavam a estudá-las, sem necessariamente serem médicos (na verdade medicina era outra profissão separada).
Eunucos eram homens que perderam os preciosos, fosse por punição ou por opção para trabalharem nos Palácios do Imperador. É que para que nenhum homem se tornasse um risco às mulheres do Imperador, eles eram todos castrados.
E Concubinas eram mulheres destinadas a copular com o imperador, apesar de também haverem aquelas que viviam do prazer destinado aos homens e mulheres que pudessem pagar mais no distrito dos prazeres.
Tem muitos outros conceitos abordados com normalidade, pois o foco não é debatê-los, mas contextualizá-los. Maomao viveu numa época em que tudo isso era comum, e está contando sua história sem se perder em devaneios sobre o que é certo, justo ou errado.
Essa clareza dela, estabelece a clareza que conduz o espectador. A calmaria dela, é a aquela que nos mantém calmos para aceitar o absurdo, e por fim, focar no que importa: sua história.
Mas o melhor de tudo isso, é que com esse formato, nos permitimos aprender mais sobre a época, sem julgamento, sem menosprezo. Também não nos colocamos como iguais é claro, fica tudo muito bem estabelecido, e por mais que possamos nos identificar aqui ou ali, a todo momento sabemos que estamos vendo uma história específica de época.
Romance Existe mas não é o Foco
Por fim, claro que tem romance, alguns dos contos são relacionados a disputas sobre amor ou relacionamentos inclusive, mas a protagonista também tem seus momentos.
Constantemente sendo obrigada a cair em flerte com um suposto eunuco belíssimo, galante, importante, e que de tão belo mais atrai a todos do que a própria protagonista, isso é mostrado mais como um empecilho que a perturba do que necessariamente romance.
Ela rejeita as investidas do tal homem, que passa a ficar cada vez mais atraído por ela, não por sua aparência, mas pelo jeito como ela o trata, e claro, por seus dons.
Por outro lado, o homem tenta se aproximar cada vez mais dela, investindo como pode e dando a ela o que ele percebe que ela gosta: Casos pra trabalhar!
Basicamente todas as portas que são abertas tem a mão dele, mas não desmerecendo as qualificações da apotecária. Tecnicamente, ela nem queria nada disso em primeiro lugar, e acaba empurrada por ele, se ajustando ao novo cenário.
E disso floresce aquele clássico romance, em que personagens que não tem nada a ver um com o outro, se aproximam pouco a pouco.
O mais irônico é que o maior mistério de toda a saga está justamente nesse cara. Ele é belo, ele tem carta branca do imperador pra andar entre suas concubinas, ele tem o próprio mordomo eunuco, ele tem acessos e contatos, ele parece ser muito mais que um simples eunuco.
Com pistas sobre sua real identidade sendo colocadas sutilmente a cada episódio, resta esperar a hora em que Maomao prestará atenção nele, e o investigará.
Humor Calibrado
Não posso esquecer de mencionar o humor bem dosado da obra. Ele não é de fazer gargalhar, mas funciona muito bem e está presente o tempo inteiro, sempre com respeito aos temas.
Maomao é fofa, simples assim, e lida com tudo com seu jeito sincero e descompromissado. Por ser inocente afinal é jovem demais, muitas situações de duplo sentido passam desapercebidas por ela, mas não pro público, e muito menos pros coadjuvantes.
Todo o elenco sabe muito bem pelo que passam, e se divertem com isso na presença da apotecária justamente pela inocência dela. Não que ela não conheça nada, na verdade ela sabe muito de muita coisa, e ela entende bem do mundo adulto e em que vive, mas ela não é condescendente com nada disso.
Ela vive em seu próprio mundinho de percepções e ambições, e vira e mexe assume sua forma de "gato" pra interagir com tudo como quem explorasse sem medo algum, exatamente como um gato curioso.
E a graça tá nisso. Sua ingenuidade, suas reações, seus comentários as vezes bobos, as vezes inadequados, e as encrencas em que acaba se metendo por não ser maliciosa... tudo isso junto vira um amalgama de alegria.
E rir em histórias complexas é algo raro de acontecer, mas acontece com muita naturalidade.
Estudo de Tradições
Por fim, o lado tradicional do Japão feudal é mostrado com tamanha exatidão, que o anime/mangá (e falo dele mesmo sem ler por tamanha confiança na fidelidade da produção do anime) que é difícil questionar erros de lógica ou incoerência, aliás, é difícil perceber a existência de algum erro se é que existe!
Tudo é tratado com cautela, nada é mostrado fora de época ou contexto, e as reações e ações sempre são plenas e condizentes. Vira quase um documentário, bem animado e divertido, com o adicional das investigações que só aumentam a quantidade de dados.
É como assistir um Sherlock Holmes do Japão antigo, ou melhor, uma "Enola Holmes" dos tempos passados orientais.
O negócio é tão sério, que teve até questão do Enem de 2025 onde quem conhece as histórias da Maomao certamente acertou (é uma sobre Baiacu). São detalhes de conhecimento realista, sem rodeios ou exageros, e tudo muito atrativo pra variar.
Mesmo quem não curte ciências ou coisas mais nerds, vai gostar de igual forma pois é tudo muito bem organizado e comunicado.
Conclusão
É bom, eu gostei, e continuo gostando. To aguardando a terceira temporada e certamente vou gostar... só não fui pro mangá ainda pois não é meu feitio. Mas sinceramente, esse é o tipo de obra que eu gostaria muito de ler.
Sem apelos sexuais, nada de explicites, ele fala sobre promiscuidade e abusos.
Sem gore ou violência, sem sangue pra todo lado, ele fala de abusos físicos, tortura e mutilação.
Sem precisar nem mesmo de conceitos e termos técnicos complexos, ele fala de mistério e traz resoluções críveis, com as ferramentas da época, com os recursos de seu tempo.
A trama é construída com naturalidade, veracidade, sem precisar de apelos, e funciona pois sabem contar, com um humor inteligente, arte maravilhosa, trilha sonora espetacular (envolve e se envolve ao ambiente com tamanha perfeição!) e uma estrutura bem organizada.
Amei, apenas amei.
É isso.
Obrigado pela leitura e...
See yah!
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