Pessoas Comuns
Black Mirror voltou em sua sétima temporada, e parece ter se lembrando das origens após a tragédia dos dois últimos episódios da sexta temporada.
Trazendo de volta as críticas sociais e as tecnologias avançadas, a série nos apresenta um mundo não tão diferente do qual já vivemos, com um pouquinho de ficção pra dar uma balançada, mas abordando justamente o que já estamos acostumados.
É muito bom ver que pelo menos de início, fizeram certo. Infelizmente, aprendi com a temporada anterior que no caso de Black Mirror, alguns episódios podem ser espetaculares e outros simplesmente ridículos, e não dá pra avaliar a série por inteiro numa tacada só. Então, falarei dos episódios individualmente.
Boa leitura.
A Tecnologia Da Vez
Como todo Black Mirror a temática central sempre se resume a uma tecnologia importante, mesmo que a trama seja afastada dela ou ela pouco apareça, no fim tudo sempre redireciona pra essa tal tecnologia.
Neste episódio há várias pequenas tecnologias avançadas sem tanta importância ou inovação, o que é até comum, e a história se passa numa época contemporânea. Datas nem são mostradas (de fato há até calendários não datados, apenas com nomes de meses e dias, mas sem anos), mas dá pra deduzir que tudo ocorre ainda na década de 20 dos anos 2000 (talvez 2026).
E a tecnologia principal é a capacidade de substituir partes do cérebro, por uma mistura de órgão artificial e aplicativo por assinatura, nos dando controle sobre nossas capacidades cerebrais, enquanto houver pagamento.
Só aí já dá pra antecipar a desgraça, mas a princípio tal tecnologia é uma ótima solução pra problemas gravíssimos, e o que estraga ela não é ela em si, mas o mal uso e interesses capitalistas em cima dela.
Há também outras tecnologias como mencionado, que também acabam tendo importância no geral, mas a principal é o streaming cerebral.
A História Resumida:
"Pessoas Comuns"
Tudo começa com um casal feliz de pessoas comuns, uma professor do primário e um metalúrgico, que vivem bem e de forma simples, sem esbanjarem e sem luxos. O maior sonho deles é ter um bebê, e esse é o maior desafio que vivem, até chegar o tumor.
A esposa acaba descobrindo um tumor cerebral e entra em coma, o que pra muitos já seria o fim da esperança, porém o marido recebe a oferta de inscrevê-la num programa de uma fintec recente, chamado Rivermind, que promete devolver as capacidades cerebrais da mulher em troca de alguns trocados.
Apesar de ser uma família humilde, a cirurgia e implementação do aplicativo é gratuita e muito convidativa. A empresa removeria o tumor, e no lugar colocaria um enchimento artificial com um backup de todas as informações da parte cerebral removida, e manteria tudo atualizado em tempo real, com auxílio de torres de sinais espalhadas pelo país.
A única questão é pra manter o fluxo de informações, seria necessário bancar um Pacote de Streaming cerebral, pagando uma bagatela de 300 mangos pra que o cérebro continuasse funcionando.
No desespero, o marido aceita e começa o terror familiar do pacote de assinatura mercenário, que se atualiza constantemente, prejudica o usuário e ainda debocha dele, sempre cobrando valores maiores pelo básico... bem vindo à Netflix.
A Principal Crítica
Deu pra notar que a crítica base é o serviço de assinatura, e a ideia ridícula mas rentável que esses planos tem de empurrar um produto promissor e magnífico, que a longo prazo vira uma bola de neve repleta de planos melhores, oferecendo o serviço antes básico, só que pelo preço premium.
Pra mulher manter-se viva, ela precisa pagar o pacote mensalmente, mas não pode se afastar muito da cidade pois o plano não cobre, e conforme o tempo passa, o pacote dela começa a receber atualizações prejudiciais que afetam seu dia a dia.
Coisas como anúncios em tempo real (ela perde a noção e começa a falar de produtos sem perceber), ou longos períodos de sono, que ela precisa ter pra manutenção, a qualidade do sistema decai conforme ela recebe propostas de upgrade pago.
Ainda tem benefícios para os assinantes mais caros, com recursos que vão além do natural, aprimorando o cérebro ao invés de apenas oferecer o básico, e as empresas sérias lucrariam apenas com esses benefícios, mas daí o povão não ia comprar... então eles pensam da forma mais mercenária possível, sempre.
O que o serviço normal oferecia passa a ser a oferta do serviço plus, e quando o plus é assinado, os benefícios dele são limitados para forçar a atualização pro serviço melhor ainda, mas mais caro, do premium, e assim segue, sempre podando o básico pra oferecer o mínimo e lucrar em cima dos necessitados.
E, o marido tem que se virar pra bancar isso tudo, chegando ao cúmulo de se humilhar ou coisa pior, só pra conseguir manter o plano de assinatura pago... ou melhor, sua esposa viva.
Netflix sendo Netflix
Talvez Netflix não tenha revisado o episódio pois só isso explicaria a aprovação dele... ou será que quiseram mesmo escancarar a própria exploração que fazem com seus usuários numa baita ironia?
Afinal, eu assino o plano Premium só pelo fato de que minha família inteira assiste, e é um saco ter de dividir a tela com os outros, mas no começo não era assim não. No começo a gente assistia pelo plano básico, em quantas telas quiséssemos, e onde quiséssemos, sendo inclusive o marketing da Netflix no começo. Só que com o tempo isso foi mudando, o plano básico ganhou limitações de imagem, acesso, e até anúncios obrigatórios, enquanto o premium era o novo comum.
Mas até isso vem sendo um estorvo pois a Netflix recentemente lançou a ideia de bloquear o streaming se for em outra residência, mesmo com o uso do pacote Premium. Minha mãe usa Netflix na clínica dela, e lá eu fui obrigado a criar uma conta secundária só pra ela poder acessar sem que houvesse constantes pedidos de reconexão, e pior, tem valor adicional pra isso.
Problema moderno é apelido pra essa condição, e apesar da ironia da Netflix, isso está muito além dela. A Claro (empresa de internet e telefonia, oferece 5G e entrega 2G e você que chore) faz isso, a Amazon (concorrente da tia Netflix), o YouTube faz isso (o negócio é gratuito mas você precisa pagar pra não ver anúncios) e conforme os anos passam, parece que tudo fica cada vez mais voltado ao plano de assinatura.
E faz sentido se pensarmos de forma lucrativa... as empresas nos prendem aos produtos através de fácil acesso e recursos satisfatórios, pra que nos viciemos e tornemos dependentes dele e, quando as cobranças surgem não há pra onde fugir.
Imagina então uma pessoa que você ama, viva por um pacote de assinatura? Até onde nos torturariam com isso.
Conclusão Exagerada
Gostei da temática, o episódio trabalha bem a ideia, mas a conclusão foi um tanto quanto desnecessária e exagerada de mais.
Na verdade não era preciso mostrar o pior acontecendo, afinal direitos humanos parecem não existir nessa época mas, poderiam ter parado ali, na dúvida se a família conseguiria se manter por mais tempo ou não.
O jeito como tudo se encerra é definitivo, mas também anticlimático, e prejudica um pouco o impacto psicológico, pelo menos pra mim.
Faz sentido, e aposto que muitas pessoas acabam se submetendo ao extremo por muito menos, mas haviam outras maneiras de continuar, sendo a resolução trágica demais atoa.
Aliás, o Dum Dummies, que é o serviço que o marido acaba usando pra conseguir um dinheiro pra bancar o plano de assinatura, parece um Onlyfans versão Black Mirror. Ao invés de venderem o corpo, vendem a dignidade através de chats em streaming.
É de certa forma uma outra abordagem do tema principal, afinal já que os Serviços de Assinatura geralmente são por Streaming na era digital, é de se esperar um método que lucre em cima do desespero usando o mesmo formato.
E, parece rentável e bem sedutor (te juro que eu mesmo faria questão de usar isso... dignidade pra que?).
Os Males e Benefícios
O intuito porém era mostrar como uma tecnologia tão promissora poderia se converter num pesadelo, caso usada pelas mãos erradas, e aqui o errado não era o usuário, mas a empresa que visava lucrar com isso.
Ao invés de salvar vidas e tornar pessoas felizes, preferiram tirar tudo deles pra terem um pouco de lucro, e tamanho custo realmente vale a pena?
Vidas passam a importar tão pouco, se é que importam... e o triste disso é perceber que é exatamente isso que vivemos hoje.
Quem tem recursos nem presta atenção nesses detalhes, mas as Pessoas Comuns sabem muito bem como é sofrer pra manter o básico.
Easter Eggs Desnecessários
E pra finalizar, não dá pra evitar falar de easter eggs ridículos como o Hotel Junipero, local onde o casal se hospeda todo aniversário de casamento, e a música do segundo episódio da primeira temporada, cantada por velhinhos no mesmo hotel.
Esses detalhes são muito forçados pra dizer que tudo se passa em um mesmo mundo, sem a menor importância.
Black Mirror ainda acredita que é necessário ligar todas as histórias em um mesmo ambiente sendo que isso nem faz diferença. O legal são as histórias individuais, as tecnologias, e não se tudo se liga.
Esse é o poder da Antologia.
Enfim...
É isso.
Espero que tenha curtido e aguarde por mais, pois essa temporada tem 6 episódios.
See yah.
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